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Novo Testamento

A palavra “testamento” é uma tradução possível para o termo hebraico berit, utilizado para se referir à aliança existente entre Deus e os seres humanos, sobretudo a que foi feita com o povo de Israel através da lei (Torah). Na língua grega, “diathékē” [διαθκη] é uma palavra geralmente traduzida para português por “testamento” ou “aliança”. No mundo antigo de fala latina, o termo “testamentum”, além das utilizações já mencionadas, foi também usado para designar um género textual que se caracterizava pelo registo escrito no qual um mestre deixava instruções a um discípulo ou um pai deixava registada uma herança a um filho. É nesse sentido que o Antigo e o Novo Testamentos representam as duas alianças que Deus fez com o seu povo: a antiga e a nova.

O Novo Testamento, ou Nova Aliança, representa a renovação, a continuidade e a inclusão de todas as nações no compromisso que Deus fez com os judeus no passado. Essa nova aliança é oferecida às novas gerações através de Cristo. Assim, a ideia pressuposta pela expressão “Novo Testamento” é que em Cristo existe uma nova aliança feita com a humanidade, a qual está na continuidade da antiga aliança (Antigo Testamento) que Deus tinha feito com os Israelitas. Embora o Antigo e o Novo Testamentos sejam mais do que dois conjuntos de livros, desde a Antiguidade que os cristãos passaram a associar a expressão do “compromisso” que Deus tem com o seu povo com os livros sagrados. Surgiu assim gradualmente a ideia de cânone, que significa a medida ideal dos livros inspirados por Deus, dividido pelos cristãos entre Antigo e Novo Testamentos.

No que respeita ao Novo Testamento, a medida dos livros inspirados por Deus foi estabelecida definitivamente no séc. iv, de acordo com a carta que o padre da Igreja Atanásio de Alexandria enviou ao Papa Dâmaso e foi lavrada no Concílio de Roma, que ocorreu sob o papado de Gelásio (492-496). A partir de então, passou a ser aceite como normativa nas igrejas ocidentais a lista de 27 livros sagrados que compõem o Novo Testamento. Apesar disso, houve obras que estiveram incluídas no cânone em momentos anteriores da História, como, e.g., os antigos documentos intitulados Didaqué, Primeira Epístola de Clemente aos Coríntios e o Pastor de Hermas.

Quanto à organização dos livros do Novo Testamento, nota-se que a sua ordenação segue um princípio hermenêutico consciente, propositadamente elaborado pelos Padres da Igreja para que os leitores da Bíblia a lessem segundo uma ordem que lhes proporcionaria a melhor compreensão possível do seu conteúdo, de acordo com os critérios de uma proposta de leitura ortodoxa. Assim, notamos que o conteúdo do Novo Testamento está ordenado de acordo com a classificação dos géneros dos seus textos, conforme critérios estabelecidos na Antiguidade e de acordo com a importância teológica que cada livro teve na perspetiva da teologia ortodoxa dos primeiros séculos. O Novo Testamento contém, assim, textos narrativos, nos quais estão inseridos: os evangelhos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que são três narrativas sobre Jesus que têm proximidade na forma e no conteúdo e são reconhecidas desde a Antiguidade; o Evangelho de São João, uma narrativa sobre a vida de Jesus cuja estrutura é significativamente diferente da dos sinóticos, apesar de também haver significativas semelhanças; e os Atos dos Apóstolos, que apresenta a história do cristianismo incipiente. A ordenação destes cinco livros que abrem o Novo Testamento é um projeto teológico, o que pode ser verificado, e.g., pela primeira posição dada ao evangelho considerado o mais completo, o de Mateus, enquanto o de Marcos, o mais antigo e o menos extenso de todos, fica em segundo lugar, antes do de Lucas, de modo a que quem o leia, sem se dar conta disso, associe o seu conteúdo ao dos outros dois evangelhos e, ao tentar interpretá-lo, não se aperceba de que Marcos não refere que Maria concebeu sendo virgem, nem que é omitida a cena do Natal, assim como a aparição de Jesus ressuscitado. Outro fator que indica que o Novo Testamento foi colocado numa ordem que propõe um filtro hermenêutico é o facto de o livro dos Actos dos Apóstolos, apesar de ser a continuidade direta do Evangelho de São Lucas, ter sido colocado, no cânone bíblico, depois do Evangelho de São João, para não quebrar a secção dedicada aos evangelhos.

A segunda parte do Novo Testamento é composta por: 1) epístolas: as primeiras são epístolas atribuídas ao apóstolo Paulo e endereçadas às comunidades cristãs (Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses e I e II Tessalonicenses). As seguintes são as epístolas atribuídas a Paulo e endereçadas a indivíduos (I e II Timóteo, Tito e Filemon). Essa porção paulina da Bíblia é seguida de um tratado teológico anónimo (Hebreus), que muitas vezes foi considerado epístola, discutindo-se se a sua autoria seria paulina. Depois seguem-se as epístolas universais, ou católicas (Tiago, I e II Pedro, I, II e III João e Judas), cuja autoria foi atribuída na Antiguidade aos apóstolos que lhes dão título; e 2) o Apocalipse, cujo conteúdo, apesar de não ser exatamente uma epístola, simula a existência de sete epístolas destinadas a sete igrejas da Ásia Menor, numa tentativa de concorrer com o que foi feito pelo apóstolo Paulo. As epístolas são ordenadas a partir da extensão, o que faz com que I e II Tessalonicenses, que foram os primeiros escritos do Novo Testamento (inclusive, foram escritos antes dos evangelhos sinóticos), ficassem no fim da lista das cartas enviadas às comunidades. Essa ordenação era interessante para a posição teológica da Igreja cristã antiga, dado que, por causa dela, o leitor começava a ler as cartas que expressam o pensamento mais maduro de Paulo (notavelmente, Romanos) e deixavam para o fim a leitura dos textos de expressão apocalíptica mais intensa, como é o caso de I Tessalonicenses.

Outro problema identificado no conjunto de cartas do Novo Testamento está na descoberta, feita pela pesquisa bíblica moderna, de que apenas sete das 14 cartas atribuídas ao apóstolo Paulo são autênticas (Romanos, I e II Coríntios, Gálatas, Filipenses, I Tessalonicenses e Filemon), enquanto Efésios e Colossenses são chamadas deuteropaulinas, i.e., provavelmente não escritas por Paulo, mas sim pelos seus seguidores; por fim, I e II Timóteo e Tito não são textos paulinos, pelo que são chamados cartas pseudopaulinas. Dificilmente o leitor não especializado perceberá a diferença existente entre cartas autênticas e inautênticas e, uma vez que estão lado a lado, associará o conteúdo de todas elas e entenderá que umas completam as lacunas das outras e que juntas expressam o pensamento paulino.

Hebreus, por sua vez, é um tratado teológico anónimo que foi aceite no cânone. As epístolas católicas, ou universais, apesar de serem intituladas de “epístolas”, não foram correspondências enviadas por um remetente a um destinatário: eram tratados teológicos que simularam o género epistolar, uma vez que o apóstolo Paulo tinha consagrado a sua utilização.

O Apocalipse é uma revelação em visões sobre os últimos tempos. Como muitos outros textos foram escritos, à época, no formato de epístola, o Apocalipse, escrito por um desconhecido profeta chamado João, inseriu igualmente o conteúdo de sete cartas simuladas na sua narrativa, mas, nesse caso, a simulação é óbvia, pois são cartas enviadas para os anjos das igrejas, não aos seus pastores ou a qualquer outra figura humana que exerça liderança nas comunidades. O conteúdo dessas supostas cartas corresponde a oráculos divinos dirigidos a representantes das igrejas da Ásia Menor. Esse pensamento apocalíptico faz parte da estrutura ficcional do livro, mas não da realidade concreta do que acontecia na Ásia Menor no fim do primeiro século da era cristã.

Ao ler o Novo Testamento do começo ao fim, segundo a ordenação em que está constituído, o leitor começa por conhecer o ministério terreno de Jesus, passa pela história da Igreja primitiva, primeiro registada nos Actos dos Apóstolos, mas também transmitida pelas epístolas, e, por fim, chega ao livro do Apocalipse, cujo retrato de Jesus só deve ser conhecido depois de o leitor ter lido sobre o Jesus amoroso apresentado pelos evangelhos. É nesse sentido que a ordenação dos livros no cânone proporciona um filtro hermenêutico que coloca em primeiro lugar os livros que entende serem teologicamente mais importantes e no final os menos importantes, e, assim, as expressões teológicas que poderiam causar escândalo ficam dissolvidas entre outras expressões mais tradicionais ou então são filtradas por conceções teológicas adquiridas em livros lidos anteriormente. Se, por um lado, essa ordenação dos livros do Novo Testamento pode significar um importante elemento para a catequese e para a instrução doutrinal, por outro lado, atrapalha a compreensão do desenvolvimento histórico da teologia cristã, assim como a das expressões teológicas genuínas de cada um dos livros do Novo Testamento.

Outro facto interessante a acrescentar a respeito do Novo Testamento é que apenas as sete epístolas autênticas de Paulo são livros cuja autoria está identificada. Todos os restantes livros são de autores desconhecidos, uma vez que os títulos dos quatro evangelhos foram fixados pela tradição e os títulos das epístolas inautênticas e simuladas foram colocados para simular a autoria (pseudoepigrafia).

 

Bibliog.: impressa: GABEL, John B. e WHEELER, Charles B., A Bíblia como Literatura, 2.ª ed., São Paulo, Edições Loyola, 2003; PENNA, Romano, A Formação do Novo Testamento em Suas Três Dimensões, São Paulo, Edições Loyola, 2014; RUSCONI, Carlo, Dicionário do Grego do Novo Testamento, 2.ª ed., São Paulo, Paulus, 2005; SCHÖKEL, Luis Alonso, Dicionário Bíblico Hebraico-Português, São Paulo, Editora Paulus, 1997; digital: Bíblia Online: https://www.bibliaonline.com.br/ (acedido a 28.12.2021).

 

Francisco Benedito Leite

Autor

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