A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z

Teatro

Do grego theathron, “teatro” significa “lugar de onde se vê”.

O teatro é indissociável de uma vivência da espiritualidade, ou não estivesse a sua génese relacionada com os rituais festivos em honra de Dioniso – deus do vinho, da juventude e da fertilidade. Na origem desta expressão artística está um conjunto de práticas rituais que contavam com ampla participação da comunidade, conjugando a música e a dança em cerimónias místicas de matriz religiosa, a que não seria alheio um pendor sexual e de procura do êxtase.

O florescimento da civilização grega promoveu a sedimentação desta arte, tendo proliferado na sociedade (politeísta e democrática) ateniense do séc. v a.C. Neste tempo dá-se uma transformação qualitativa importante à medida que o teatro se institui na vida da cidade, nomeadamente através do estabelecimento de um concurso teatral que tinha lugar entre os meses de março e abril, inserido nas Dionísias, e que contava já com um espaço próprio para as representações, adjacente ao templo de Dioniso, que incluía um altar no centro do palco e lugar reservado no centro da primeira fila para o sacerdote desse templo. Às condições materiais de representação juntou-se o génio dos três grandes tragediógrafos da Antiguidade Clássica, Ésquilo (525-456 a.C.), Sófocles (496-406 a.C.) e Eurípides (480-406 a.C.), que muito contribuiu para o desenvolvimento desta arte.

Na trilogia de Ésquilo Oresteia, composta pelas peças Agamémnon, Coéforas e Euménides, a presença do plano divino é ainda marcante, ou não fosse a deusa Atena a única personagem capaz de sanar o conflito. Se os problemas levantados colocam questões morais e éticas tanto aos protagonistas como ao público, é inegável o peso do destino e do conflito entre o Homem e os deuses no desenrolar da ação. Em grande medida, o conflito encenado nesta trilogia pode-se resumir ao confronto entre a política e a religião. Posteriormente, regista-se uma tendência para a progressiva focalização do drama no plano humano, pese embora Antígona, de Sófocles, tenha como motor da ação a convergência entre a lei da cidade e a divina. Com Eurípides, o drama particular, privado, tende a sobrepor-se à dimensão pública – política – da ação.

É em pleno auge da civilização helénica, no despontar do teatro ocidental, que surgem as primeiras declarações contrárias à atividade dramática. Platão, na sua República, dá o mote, considerando que o teatro, pela sua natureza mimética, é, de entre as formas narrativas, a que menos se enquadra na sua república ideal, expulsando dela, assim, os atores. Esta crítica e a rejeição do fenómeno teatral encontrarão seguidores no contexto do Império Romano, particularmente entre os cristãos. Este posicionamento é largamente sustentado pelo tratado de Tertuliano De Spectaculis, onde se advoga a origem diabólica do teatro e o seu intuito de seduzir para o pecado e de “macaquear” o Criador, e, posteriormente, também por S.to Agostinho, que, no livro terceiro das suas Confissões, relembra a sua experiência juvenil enquanto espectador de teatro, reconhecendo o modo como essa vivência lhe corrompia a alma.

Não deixa de ser inusitado que após tão violentas críticas à arte da representação o ressurgimento do teatro na Europa se tenha dado precisamente no seio da Igreja. É no contexto das principais celebrações do calendário litúrgico – Natal e Páscoa – que se irão introduzindo pequenos momentos dramáticos dentro do local de culto, em plena cerimónia religiosa e com a intervenção dos próprios sacerdotes. Tal como nas grandes catedrais românicas e góticas as artes decorativas cumpriam a missão de transmitir a mensagem de Deus – a Bíblia dos pobres –, o teatro também se integra neste propósito didático.

À medida que as representações dos momentos cruciais da vida de Cristo foram sendo integradas no ofício litúrgico e ganhando maior dimensão, dá-se uma deslocação do teatro para fora da Igreja, primeiro para o átrio e, posteriormente, para as ruas. Presépios, milagres e moralidades integram, na Idade Média, as festividades públicas de cariz religioso, tendo como matéria não apenas a vida de Jesus, mas também a dos santos e seus milagres, não raras vezes com amplo recurso à alegoria (vícios, virtudes, etc.) como meio de evangelização e estabelecimento da fé. A celebração do Corpus Christi é um caso paradigmático da crescente relevância do teatro no seio da vida espiritual da sociedade europeia. Ao longo dos séculos, foi integrando espetáculos cada vez mais complexos, com maior aparato cenográfico, maior número de intervenientes e maior duração (em alguns casos, cerca de um mês).

O Renascimento, por um lado, e a Reforma, por outro, terão um impacto significativo no desenvolvimento da arte teatral e no modo como esta se relaciona com a vivência da espiritualidade, de modo geral, e com a Igreja, em particular. Se é certo que continuou sempre a existir teatro para assinalar os principais momentos do calendário litúrgico, não é menos evidente que nos sécs. xvi e xvii o impacto da atividade teatral se insere mais em âmbito profano do que no contexto religioso. Esta mudança já se fazia anunciar na dramaturgia de Gil Vicente, pois, se as suas primeiras obras são principalmente dedicadas a temas religiosos, a partir de certo momento da sua carreira, coincidente sensivelmente com a subida ao trono do rei D. João III, assiste-se a uma mudança não apenas na estrutura das suas peças, mas sobretudo quanto ao assunto, que prescinde da matéria religiosa encenando, agora, ações com base em materiais mais diversificados.

A afirmação do teatro enquanto atividade comercial lucrativa, meio de informação e não raras vezes veículo de propaganda ao serviço da Coroa espoletou o desenvolvimento desta arte e o surgimento de alguns dos mais célebres dramaturgos de sempre, como William Shakespeare (1564-1616), Lope de Vega (1562-1635) ou Molière (1622-1673). Se parte da dramaturgia então produzida, por estes e por outros autores, parece alhear-se das questões relacionadas com a espiritualidade, é inegável a dimensão edificante de obras tão célebres como Doctor Faustus, de Christopher Marlowe (1564-1593), ou El Burlador de Sevilla, de Tirso de Molina (1579-1648). É, contudo, Pedro Calderón de la Barca (1600-1681), em La Vida Es Sueño ou El Gran Teatro del Mundo, entre outras peças, quem, de forma mais explícita e recorrente, reflete sobre questões filosóficas e doutrinárias relacionadas com a espiritualidade no contexto da Contrarreforma. Nesta época, nomeadamente em Espanha e Portugal, manteve-se uma estreita relação entre a atividade teatral e algumas instituições religiosas. Em Portugal, em 1588, um alvará régio determina que não se faça teatro em Lisboa sem a licença do provedor e irmãos da Misericórdia, de modo a que os lucros daí resultantes pudessem reverter para as obras pias levadas a cabo por esta instituição.

O ideário do Iluminismo poderá ter contribuído para a menor incidência de temas relacionados com a espiritualidade no teatro do séc. xviii. Contudo, essas questões voltarão a surgir no teatro do romantismo, com a recuperação de figuras/mitos como Faust, de Johann Wolfgang Goethe (1749-1832), ou Don Juan Tenorio, de José Zorrilla (1817-1893). O olhar dos dramaturgos românticos sobre estes protagonistas imprime uma reflexão sobre o Homem e a sua relação com Deus.

Este questionamento volta a ser central numa das principais peças de teatro moderno do séc. xx: Waiting for Godot, de Samuel Beckett (1906-1989). Depois do terror da Segunda Guerra Mundial e dos campos de concentração, quando escrever poesia parecia um ato de barbárie, parafraseando Theodor Adorno, Samuel Beckett coloca em cena duas personagens, em terra de ninguém, no drama da espera por alguém (God[ot] – Deus?) que parece nunca chegar.

 

Bibliog.: BORIE, Monique et al., Estética Teatral – Textos de Platão a Brecht, Lisboa, FCG, 1996; SERRA, José Pedro, Pensar o Trágico, Lisboa, FCG, 2006; WICKHAM, Glynne, A History of the Theatre, London, Phaidon, 2007; WILES, David e DYMKOWSKI, Christine, The Cambridge Companion to Theatre History, Cambridge, Cambridge University Press, 2013.

 

José Pedro Sousa

Autor

Scroll to Top