A teologia do afeto, que, no âmbito da teologia contemporânea, tem no teólogo milanês Pierangelo Sequeri (n. 1944) a sua grande referência, concentra a atenção fenomenológica e o esforço teorético na estrutura afetivo-simbólica da consciência para evidenciar tanto a qualidade antropológica da fé teologal, como a identidade estruturalmente crente do ser humano, enquanto se realiza como disposição e dinâmica de confiança.
Sem ceder a derivas sentimentalistas, a inteligência da fé é deslocada da compreensão intelectualista, refém do modelo gnosiológico iluminista que separa razão e fé, saber e sentir, verdade e liberdade, como se fossem campos que, à partida, se excluiriam mutuamente: o saber objetivo universal, portanto, racional-científico, não poderia sentir; o sentir, porque subjetivo e particular, não saberia o que é universal. Na reação apologética da teologia ao racionalismo moderno, a apreciação afetiva da verdade, revelada como passo para a adesão efetiva de um sujeito livre, essencial no ato de fé, fica negligenciada. Os motivos externos de autoridade da revelação para a sua credibilidade, e a consequente adesão pela fé, sobrepõem-se ao dinamismo humano de apreciação afetiva em liberdade. Perde-se, assim, tanto o dinamismo antropológico da fé cristã, como a sua originalidade religiosa no reconhecimento da revelação de Deus na história de Jesus de Nazaré.
Atendendo fenomenologicamente à génese e à formação da identidade do ser humano, desde o nascimento da criança, a teologia que atende ao afeto colhe-o como elemento constitutivo, não só do ato de fé religioso/cristão, mas de qualquer ato humano. Movemo-nos quando nos comovemos. É um toque afetivo vindo de fora/de outrem que nos põe em movimento. Na realidade, é esse toque sensível e o eco afetivo que nos trazem à vida e que nos mantêm em vida. Ressoando como dignos de confiança e, por isso, merecedores de crédito, expõem a abertura constitutiva do ser humano a um dever ser, o pressentimento originário do bem, que faz sentir o mal como escândalo. Constitui-nos, portanto, como humanos a ressonância interior de um impacto afetivo do bem/da verdade/da justiça, que move à correspondência livre, gerando relação. Pensemos na mãe que alimenta o seu bebé ou que lhe canta uma canção de embalar. Quando o faz, move a criança a corresponder pelo olhar ou pelo sorriso. No húmus originário da confiança, sem ter ainda conhecimento reflexo, nem palavra para se dizer, o bebé já aprende e já corresponde ao sentido, à verdade e à justiça das relações, das coisas, da própria existência. Por isso, a mãe não é apenas “outro”, mas é também abertura simbólica a “Outro”. Nessa relação de afeto, saber e sentir conjugam-se intimamente. Mãe e filho conhecem e reconhecem-se pelo bem que os afeta e os move; saboreando o bem, re-conhecem o sentido que é digno de acolhimento e de correspondência livre. O sentir expõe a sua competência epistemológica e axiológica: é inteligente e reconhece valor. O saber tem modelação afetiva: sente o bem que confirma o sentido, a verdade/bondade da existência.
Afeto é, pois, um sentimento intenso e persistente, que liga pela confiança reconhecida e correspondida. É reconhecimento afetivo e correspondência efetiva. Nunca é meramente subjetivo, porque é laço, vínculo que reclama um outro, o qual, simbolicamente, abre a Outro. Permanece vivo na reciprocidade, na correspondência livre: só é afeto enquanto for laço.
O afeto identifica e estrutura a humanidade do ser humano. Ora, é este modo crente de ser, que vive da confiança reconhecida e correspondida, que vemos realizado no ato de fé cristão. O modo como os discípulos, os primeiros e todos os que vêm depois, sabem e aderem à verdade e à justiça de Deus, revelada em Jesus de Nazaré, não é diferente daquele pelo qual cada ser humano conhece e adere à verdade, enquanto a reconhece justa e digna de confiança. Saber a verdade de Deus acontece como crédito acordado à história de Jesus de Nazaré e não há outro modo de lhe aceder historicamente se não pelo testemunho, a forma humana de acesso à verdade, que vive sempre do crédito que se lhe conceda. É a sua força humana e é a sua fragilidade: a estrutura efetiva da revelação está indissociavelmente ligada ao reconhecimento afetivo e à correspondência livre. Ao afeto, portanto. Afirmar que a fé vive de afeto significa, por isso, reconhecer que se constitui e se renova como ressonância afetiva do dom que Deus é e que faz de Si na história de Jesus de Nazaré (elemento “pático”-estético), quando é conhecido e reconhecido como digno de confiança (inteligência afetiva), e é, por isso, correspondido em liberdade (elemento prático-ético).
À lógica do afeto – ao seu logos, ao seu nomos, ao seu pathos –, a revelação cristã dá o nome de agape-amor. É este afeto-laço-amor que diz o mistério de Deus, a sua verdade e a sua justiça, a sua força e a sua forma. É ele que diz, também, a qualidade mais íntima do ser humano e a relação originária de filiação, cultivada na oração e realizada na forma de uma vida grata e comprometida, com a paternidade-maternidade divina. Declarar que no “princípio era o logos” é o mesmo que dizer “no princípio era o laço/o afeto”. Sendo no início, será o horizonte e o caminho da verdade da vida no Espírito.
Bibliog.: Botturi, Francesco e Vigna, Carmelo (orgs.), Affetti e Legami, Milano, Vita e Pensiero, 2004; Correia, José Frazão, A Fé Vive de Afeto; Variações sobre Um Tema Vital, Prior Velho, Paulinas, 2013; Damásio, António, Sentir e Saber. A Caminho da Consciência, Lisboa, Temas e Debates/Círculo de Leitores, 2020; De Monticelli, Roberta, L’Ordine del Cuore: Etica e Teoria del Sentire, Milano, Garzanti, 2003; Maiolini, Raffaele, Tra Fiducia Esistenziale e Fede in Dio: L’Originaria Struttura Affettivo-Simbolica della Conscienza Credente, Milano, Glossa, 2005; Neri, Marcello, Gesù, Affetti e Corporeità di Dio: Il Cuore e la Fede, Assis, Citadella Editrice, 2007; Pagazzi, Giovanni Cesare, Il Principio Era Il Legame: Sensi e Bisogni per Dire Gesù, Assis, Citadella Editrice, 2004; Pourrat, Pierre, “Affections”, in Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique, t. i, Paris, Beauchesne, 1937, pp. 235-239; Id., “Affective (spiritualité)”, in Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique, t. i, Paris, Beauchesne, 1937, pp. 240-246; Sequeri, Pierangelo, Il Dio Affidabile. Saggio di Teologia Fondamentale, Brescia, Queriniana, 1996; Id., A Ideia da Fé. Tratado de Teologia Fundamental, Braga, Frente e Verso, 2013; Id., La Fede e la Giustizia degli Affetti: Teologia Fondamentale della Forma Cristiana, Sena, Cantagalli, 2019.
José Frazão Correia