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Utopia

A definição de “utopia” é, por várias razões, problemática. Primeiro, a investigação sobre a utopia atravessa várias disciplinas; basta assinalar a história, a literatura, a antropologia cultural, o estudo das teorias políticas, a psicologia e a filosofia. Consequentemente, cada uma destas disciplinas penetrou no reino da utopia com o seu próprio método, os seus próprios conceitos, o que contribuiu não só para ampliar o conteúdo da significação da palavra, mas também para tornar a sua definição mais problemática. Isto teve como efeito radicalizar ainda mais a separação, nas definições de “utopia”, entre o uso corrente desse termo e o seu emprego por especialistas. A tudo isto acresce um problema ideológico na abordagem da utopia entre aqueles que a consideram positivamente e os que a consideram negativamente, entre aqueles que a veem como um ideal de perfeição e os que a veem pejorativamente como uma realidade indesejável.

Colocar o problema da definição de “utopia” é também colocar o da sua limitação relativamente aos diferentes modos de pensamento, bem como procurar clarificar as ramificações e as extensões que o termo assumiu desde a sua formação, com Thomas More. Além disso, este problema constitui um sério obstáculo ao aprofundamento da análise do pensamento utópico. Assim, por exemplo, a distinção entre comunidades utópicas e o que constitui arbitrariamente o corpus das utopias escritas nem sempre está claramente estabelecida. Trata-se, nos dois casos, do mesmo tipo de pensamento, das mesmas características? Recentemente, alguns autores (TROUSSON, 1978; MANNHEIM, 1986; RICOEUR, 1997; PANAGOPOULOS, 2019) procuraram definir a utopia em relação à corrente literária da ficção científica. Assim, todos estes elementos dificultam uma compreensão clara do que é a utopia. Isso explica o motivo por que, de acordo com Sargent (1972), a maioria dos investigadores evitou o problema de definir a utopia, dedicando-se ao que lhes parecia mais essencial sobre este género literário.

O termo “utopia” remonta a Thomas More (e a Erasmo). A sua primeira versão referia-se ao termo latino nusquama, que significa “em lugar nenhum”. Posteriormente, foi combinado com a partícula grega ou, depois com a latina u, indicando uma forma negativa, e mais tarde associado ao termo grego topos, o lugar escolhido para construir a Utopia. O autor da Utopia teria escrito neste esboço etimológico – essa região designar-se-ia Eutopia – o prefixo “eu”, designando em grego uma ampla gama de aspetos positivos.

Desde o início, encontra-se, portanto, uma possível dupla interpretação do termo “utopia”. No primeiro caso, a definição simplesmente referir-se-ia ao relato literário da Utopia de Thomas More, significando, assim, que a Utopia é sem lugar. A segunda interpretação suporia, por extensão, a ideia de um estado imaginário de perfeição ideal, consequentemente associando a felicidade a esse lugar: esse duplo sentido generalizado ilustra, segundo Levitas, que o conceito de utopia é um lugar de complexidade. Assim a definição de “utopia”, ou do que é utópico, está intimamente ligada à posição ideológica dos investigadores. Desde o início, este trocadilho expressa ironia e sátira relativamente à sociedade existente, o que está explícito na Utopia, e o termo assumiu posteriormente essa conotação irónica. Frequentemente, o termo “utópico” significa “idealista” e “irrealista”, sendo, além disso, um termo usado para rejeitar uma ideia inaceitável.

Se voltarmos à dupla etimologia da palavra, tal como surge sugerida por More, aí se encontra uma dupla significação possível. Se a utopia supõe a ideia de um sem lugar, a negação do lugar, de um lugar, pode-se, por extensão, pretender que significa também a negação do tempo? O outro significado sugere a ideia de felicidade. A priori, poder-se-ia estabelecer que este último significado é de certa forma um valor pressuposto no “sem lugar”, visto que se trata de uma fuga dos limites espaciais e das contingências materiais, o que poderia significar que o sem lugar traz a ideia de felicidade e que, por extensão, essa felicidade está noutro lugar além do aqui e agora.

Poder-se-ia, então, associar o início da formação deste termo ao poder sugestivo, até mesmo contestatário, da utopia, que na circulação das diferentes significações estabelecidas desde o início teria criado um poder imaginário que constituiria uma solução alternativa ao que é. Além disso, outra característica, que se deve mais ao conteúdo do que à construção etimológica da Utopia, manifesta-se com bastante clareza: é um lugar que diz respeito à organização social ou coletiva dos humanos. Nunca é um lugar individual; esta organização está sempre associada a uma descrição relativamente detalhada onde o lugar pode ter significados diferentes. Primeiro, evoca uma certa neutralidade, pelo menos na aparência. Seria um lugar onde o lugar físico, geográfico, está exilado da realidade por uma construção social imaginada pelo utópico: trata-se apenas de uma sátira, ou trata-se sempre duma crítica à sociedade existente? Ou a sociedade existente é sempre, mesmo de modo velado, posta em questão? De qualquer forma, trata-se de uma apresentação de outra organização social onde as pessoas são felizes. Trata-se aqui de saber se a essência desta descrição se deve à felicidade do ser humano ou à apresentação da organização desta nova sociedade. Depois, a utopia pretende a felicidade. Este lugar seria, de alguma forma, o bom lugar – ou o bom lugar seria o sem lugar. Por fim, o terceiro sentido é claramente avaliativo, supõe um mau lugar (distopia). Neste quadro se inscreve toda a corrente distópica contemporânea.

 

Bibliog.: impressa: KONSTAN, David, “Post-utopia: the long view”, Humanities Research, vol. vol. 10, n.º 2, 2021, p. 65; LEVITAS, Ruth, The Concept of Utopia, Hertfordshire, Syracuse University Press, 1980; MANNHEIM, Karl, Idéologie et Utopie, Paris, Librairie Marcel Rivière, 1986; MORE, Thomas, L’Utopie, Paris, GF-Flammarion, 1987; TROUSSON, Raymond, “Utopie et esthétique romanesque”, in Le Discours Utopique. Colloque de Cerisy, Cerisy-la-Salle, Union Générale d’Éditions, 1978, pp. 392-400; digital: PANAGOPOULOS, N., “Utopian/Dystopian visions: Plato, Huxley, Orwell”, Sociology International Journal of Comparative Literature and Translation Studies, vol. 8, n.º 2, mar. 2019, pp. 22-30: https://www.grafiati.com/pt/literature-selections/plato-republic/journal/ (acedido a 31.12.2021); SARGENT, Lyman Tower, “Utopia, the problem of definition”, Extrapolation, vol. 16, n.º 2, 1959, pp. 137-148: https://dokumen.pub/race-and-utopian-desire-in-american-literature-and-society-1st-ed-2019-978-3-030-19469-7-978-3-030-19470-3.html (acedido a 31.12.2021).

 

Domingos Lourenço Vieira

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