De um ponto de vista lapidar e genérico, “aristotelismo” designa a assimilação direta (apropriativa ou revitalizadora), oblíqua (aproximativa ou desconstrutiva) ou antagónica (oponente ou destrutiva) do pensamento de Aristóteles, ou do que dele se perceciona, com base numa afinidade reflexivamente partilhada e estruturadamente difundida em vista de motivações filosóficas, historiográficas, culturais, epistémicas, ideológicas ou religiosas. A definição avançada vale apenas como lance prospetivo de uma travessia cuja vastidão nos confronta, logo à partida, com a dificuldade de aceder à compreensão mesma do vocabulário a que o Estagirita recorreu para conceptualizar a sua experiência reflexiva. Na verdade, o intuito de rastrear o “aristotelismo” no trilho de uma corrente, movimento ou tendência a reclamar imediata tipificação pressupõe já um complexo enredo de projeções, absorções, depurações e restrições de leitura cujo sentido mais promissor não sobrevive fora das peripécias, hesitações e impasses a que os próprios “conceitos aristotélicos” foram sendo historicamente sujeitos, mormente os que vingaram e prevaleceram como base da autointerpretação intelectual, mental e espiritual do ocidente (e.g., substância, indivíduo, abstração, inferência, proposição, forma, matéria, essência, acidente, ato, potência, eficiência, finalidade, etc.).
Inerente a esta prolongada e multifacetada sedimentação conceptual, acresce a eclosão de sucessivos ciclos de estudo, ensino e divulgação que, por influxo da leitura, comentário e interpretação dos manuscritos originais, replicados ou traduzidos do Estagirita, assegurarão em descontínua e reticular interdependência a transmissão do seu legado filosófico. Aclimatado a paisagens linguístico-culturais tão díspares e distanciadas como a helenística, a neoplatónica, a siríaca, a árabe, a bizantina, a judaica, a patrística, a latina e a renascentista, o aristotelismo explicita-se num arco temporal que se distende desde os sécs. iv-i a.C., com a consolidação inaugural dos círculos peripatéticos mais antigos e subsequentes (e.g., respetivamente, Teofrasto de Eresos, primeiro sucessor na condução do Liceu, e Andrónico de Rodes, primeiro editor dos manuscritos dispersos do Estagirita), até ao séc. xviii, com a sobrevivência de movimentos aqui e acolá de tímida reação, mas, na maior parte das vezes, de notável resiliência (e.g., no reconhecido labor comentarístico da academia conimbricense) face à reconfiguração moderna de um modelo mundividencial geneticamente rácio-iluminista, metodicamente empírico-experimentalista e visceralmente antidogmatista, antimagisterialista e, por ricochete, antiaristotélico.
A ideia de uma “tradição aristotélica” monolítica e encapsulada, em progressão linear e imutável, carece, pois, de sustentação. Na verdade, mais do que uma transmissão automatizada por estrita obediência a um cânone textual ou doutrinário, o “aristotelismo” explicita-se num fluxo dinâmico ora de afinidades internas, aproximações exógenas e reabilitações tardias (evidenciadas respetivamente em registo discipular, comentarístico e ensaístico), ora de desfigurações resultantes de leituras acomodatícias (bem patentes na contínua produção de traduções e cópias com mais ou menos interpolações e glosas), ora de juízos de intenção ostensivamente adversos (alguns deles sentidos na própria pele por Aristóteles, estando ele próprio e o Liceu por si fundado na mira de constantes suspeitas de conluio pró-macedónico e práticas de impiedade). Se, com efeito, pensarmos por momentos nas querelas metafísicas, religiosas e científicas que inflamaram muitas das controvérsias imputáveis quer à teologia medieval, quer ao ecletismo renascentista, quer ainda à gnosiologia moderna, facilmente se percebe que à compreensão do aristotelismo são inerentes não só os momentos em que a filosofia aristotélica é abertamente aceite e incorporada em circuitos culturais e dispositivos institucionais do saber (e.g., universidades e colégios), mas também aqueles em que, mais tarde, a mesma se vê visceralmente recusada e combatida a pretexto quer de legitimações propagandísticas de poderes políticos autoconstituídos (e.g., despotismos esclarecidos, providentes e salvíficos versus contrapoderes obscuros, decadentes e subversivos), quer de apelos emancipatórios ao progresso do conhecimento (e.g., autonomia da razão versus primado da autoridade), quer ainda de desígnios programáticos de modelos educativos inovadores (e.g., eficácia do experimentalismo empírico-científico versus inoperância do saber retórico-dedutivo).
Ora, será precisamente em contexto religioso que, pela primeira vez, o aristotelismo enfrentará o seu teste de resistência mais duro e desafiante. Ao contrário do que tudo faria supor, a entrada de Aristóteles no “Ocidente cristão” não foi propriamente indolor e triunfal. Insuperavelmente eficaz na estruturação do aparelho discursivo (sobretudo retórico e dialético) da escolástica, é verdade que o Organon aristotélico já há muito que exibia virtualidades ímpares para consolidar o travejamento apologético, persuasivo e argumentativo da mensagem cristã. Todavia, antes que a síntese entre compreensão racional e fé religiosa por mediação filosófica da teologia pudesse, por primordial impulso inspirador de Aberto Magno, produzir os seus efeitos mais intensos e duradouros na portentosa sistematização sumular e comentarística de Tomás de Aquino e no legado deste na assimilação da filosofia aristotélica pela teologia cristã, convém ter presente que é precisamente em contexto eclesial que os textos e a doutrina de Aristóteles têm de enfrentar, a partir da receção ocidental de incipientes traduções árabes e latinas, um prematuro e muito pouco amistoso “antiaristotelismo”: tome-se, a título exemplificativo, um conjunto de diretivas conciliares a condenar o pendor herético dos escritos do Estagirita (e.g., Concílio de Paris, em 1210) ou uma epístola pontifícia aos estudantes das faculdades de Artes e de Teologia da Universidade de Paris a exortá-los ao estudo focado no revelado e supremo objeto divino do saber, evitando as maléficas distrações da erudição filosófica (e.g., Gregório IX, em 1231), e, já agora, um memorando episcopal a informar a Santa Sé da nefasta influência de “certas novidades filosóficas” disseminadas na Universidade de Paris com base numa série de escritos recém-chegados de Aristóteles, tais como a Física, o Acerca da Alma e a Metafísica (e.g., relatório de Étienne Tempier, bispo de Paris, ao Papa luso João XXI, em 1277). Todas as tentativas para silenciar e neutralizar o perigoso Aristóteles desaguavam invariavelmente na convicção de que as teorias sobre a matéria incriada, o motor imóvel, a individuação hilemórfica e o puro intelecto impassível encobriam uma fatal ameaça à ortodoxia teológica, pondo sobretudo em perigo três dogmas racionalmente pré-iluminados pela revelação e pela fé, a saber: a criação divina do mundo, a incarnação divina em Cristo e a ressurreição individual do corpo unido à alma no final dos tempos.
Superada essa fase crítica, no decurso da qual o pensamento aristotélico, antes de ser absorvido e transfigurado pela pena tomista, oscila entre um crispado momento de suspeita e uma hesitante janela de oportunidade para a mundividência cristã, o aristotelismo perdurará até ao séc. xix com mais ou menos visibilidade, mergulhando a partir daí numa espécie de retração (de pouco ou nada valendo, de resto, o firme propósito do Papa Leão XIII de “restaurar a filosofia cristã em conformidade com a doutrina de S. Tomás de Aquino” – e ipso facto com a sua latente caução aristotélica –, tal como plasmado na encíclica Aeterni Patris, de 1879), até reemergir, enfim, com inesperado vigor em plena segunda metade do séc. xx sob o signo de um efusivo renascimento. De facto, graças ao efeito contagiante de uma reabilitação da filosofia prática (Rehabilitierung der praktischen Philosophie) – mote que germina e se dissemina no panorama filosófico alemão nos inícios da década de 70 do séc. xx –, eis que um súbito interesse deflagra relativamente a tudo o que diga respeito a Aristóteles, com especial enfoque nos textos em que, à luz de novas e originais perspetivas, a filosofia prática pode neles ser revisitada e relançada em fertilização cruzada com todos os restantes domínios e recantos da sua obra, desde o primeiro e mais juvenil dos diálogos, o Protrepticus, até ao derradeiro tratado da maturidade, a Política. John Wallach condensa esse momento de reapropriação na ambivalente expressão “viragem aristotélica” (aristotelian turn), podendo com isso significar “viragem” (em-direção-a Aristóteles), mas também “reviravolta” (na-abordagem-de Aristóteles). Ambas são conciliáveis, convergindo para reforçar a ideia de uma vasta rede de autores, investigadores e estudiosos cuja pertença ao que consensualmente se tipifica como neoaristotelismo contemporâneo forma um ecossistema reflexivo no interior do qual problematizações de travo aristotélico como a) o estatuto ontológico e discursivo da ação, b) o nexo ético entre virtude moral e decisão prudencial em situações-limite, c) o enlace crítico entre ética, política e economia, d) a reconfiguração discursiva da retórica no direito e na comunicação, e e) a revalorização prática da dialética na modelação lógica indutiva e probabilística assumem uma relevância e uma atualidade difíceis de subestimar.
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António Amaral