Analogia (I)
Caracterização geral
Antes de ser uma operação mental ou tipo de raciocínio, a analogia é um procedimento geral do espírito, talvez o primeiro, esse de discernir em tudo afinidades e relações numa tentativa sempre gorada de reduzir a impressão de estranheza do meio em torno à familiaridade de um mundo habitável, como se nada fosse impossível de alcançar, compreender, explicar. A meio caminho entre a identidade e a diferença, o contínuo e o descontínuo, ela intui similitudes entre objetos de géneros distintos que, muito embora não possuindo partes ou propriedades em comum (subordináveis ao mesmo conceito), se deixam, todavia, comparar pelas relações recíprocas das partes ou qualidades entre si. A analogia apresenta-se, assim, como uma relação de semelhança, uma relação de relações, uma igualdade mediata, como tal aplicável aos mais diversos domínios da experiência e do saber. Ela pode ser imediata, como é o caso da intuição poética ou religiosa, aliás, indissociáveis, ou constituir uma forma de raciocínio, perfazendo então um auxiliar importante na elaboração de modelos, hipóteses e teorias científicas. No primeiro caso, ela comanda a produtividade semântica da linguagem, não dispondo o espírito, à partida, de uma outra forma de falar da sua experiência espiritual senão pela transposição simbólica, metafórica ou alegórica de fenómenos da experiência sensível. No segundo caso, não procedendo das partes ao todo, nem, inversamente, como a indução e a dedução, a analogia estabelece correspondências entre partes de objetos distintos, que, no entanto, apresentam relações similares de estrutura. Tal é o que sucede com a proporção matemática, definida pelo carácter transitivo das relações ou, no âmbito da investigação experimental, com o paralelismo entre objetos observados, inferindo e transpondo para um segundo, menos conhecido, características presentes num outro já bem conhecido.
Como a análise, a analogia reconduz o múltiplo ao uno, mas, contrariamente àquela, não o reduz à identidade, antes o integra como parte constituinte de uma totalidade maior, de um sistema, uma comunidade de relações, elaborando conjuntos, sínteses sempre mais vastas de termos que, embora categorialmente distintos, apresentam entre si uma relação similar de estrutura. É, por isso, essencial à investigação científica – álgebra, geometria ou ciências da natureza –, mas também à filosofia, na reflexão que empreende acerca da estrutura da realidade como tal. Disso mesmo se apercebeu Platão, um dos fundadores da metafísica, ao aplicar o esquema da proporção matemática, recebido do pitagorismo, à relação participativa entre o inteligível e o sensível, como sucede na comparação entre o Bem e o Sol. Porém, esta forma de analogia, dita de proporcionalidade, só ganha a sua plena significação metafísica se aferida e completada por essa outra de atribuição. Nesta, uma diversidade genérica de entes é elevada e referida ao mesmo ser, o qual, pela sua universalidade maior ou propriamente transcendental, ganha um estatuto inclusivo de toda a realidade. A ela não ascenderiam, contudo, os autores helénicos, seja porque colocavam o Bem acima do ser, não o podendo por isso incluir neste último, como ocorre no platonismo, seja porque a substância, primeira das categorias, fosse apenas, como em Aristóteles, uma das aceções do ser, mesmo se a mais fundamental. Com efeito, embora o Estagirita tivesse feito um uso metódico da analogia como forma de coordenar um diverso sob um conceito de máxima universalidade, de investigar os princípios últimos e comuns do ente, ou de resolver a questão dos vários sentidos do ente (Metaf. 4, 1070 a31-b27; ibid., 2 1003 a33-34e), ele ainda não dispõe de um conceito análogo de ser. Esse seria o contributo da escolástica do séc. xiii, no seu intuito de constituir um objeto adequado a uma metafísica cristã, suscetível de constituir a base propedêutica de uma teologia. A Sagrada Escritura, bem como a tradição patrística, encorajava os filósofos cristãos a fazer um uso alargado da analogia, como via para ascender das criaturas a Deus, sem, contudo, o determinar por elas. Centrais eram para eles as questões do conhecimento que o homem pode alcançar de Deus, o discurso conveniente a esse respeito e a relação que tem com o mundo, ao mesmo tempo imanente e transcendente.
O conceito analógico de ser
Os escolásticos, seguindo Aristóteles, consideravam três possibilidades de aplicação da significação de termos ou nomes comuns, predicáveis de outros a eles subordinados: o unívoco, que se aplica a todos de modo idêntico; o equívoco, em sentido, de cada vez, distinto; e o análogo, em sentido sempre distinto e, contudo, similar dentro de um ponto de vista determinado e em certo grau. No que ao ser concerne, a sua preferência foi para a analogia, uma vez que ela permite relacionar Deus e criaturas num conceito inclusivo de máxima amplitude e compreensão, sem anular as respetivas diferenças numa unidade indiferenciada, como sucede no monismo panteísta, antes distinguindo-as e hierarquizando-as numa relação de dependência, medida pela própria analogia.
Tomás de Aquino é, sem sombra de dúvida, o autor emblemático que melhor explicitou a estrutura complexa, dual e cruzada da relação analógica, numa síntese notável entre a teoria platónica da participação e a teoria aristotélica da causalidade. Por um lado, ela comporta uma dimensão horizontal, dita de proporcionalidade, relativa à gradação recíproca dos entes e à dependência que têm do ser, por eles diversamente participado; por outro, uma de verticalidade, apelidada de atribuição, que exprime a relação causal de dependência que todos os entes têm de um primeiro termo. Nele se realiza em plenitude o próprio ser – ser per prius ou analogado principal, os outros só o sendo per posterius ou por referência a ele. A metafísica, enquanto parte das criaturas para Deus, baseia-se na primeira, efetuando com ela uma análise metódica do ente na sua estrutura ontológica. Chega, por esta via, à noção de uma essência infinita, perfeita, súmula das perfeições do criado, a que o ser é inerente e em que é subsistente: trata-se do “próprio Ser” (ipsum Esse), indeterminado, simples e, por isso, eterno – o primeiro Ente transcendente. Depois, num segundo momento, que é o da teologia natural, a metafísica desce Dele para as criaturas, estabelecendo laços causais com elas.
Para S. Tomás, a metafísica só alcança um conhecimento relativo de Deus, proporcionado ao nosso saber finito das criaturas e à participação de ambos num fundo comum e indeterminado de ser. Sinaliza-o como causa transcendente dos seres criados, entregando à teologia revelada o desvelamento da sua essência. Já Duns Escoto prefere a via da univocidade, pois exige da metafísica a cognoscibilidade de Deus, o que só é possível a partir de um conceito uno de ser, de significação determinada, comum ao finito e ao infinito. Tal é o caso do ente quididativo, a essência nua, que exprime a condição formal da não-contradição, a possibilidade lógica. Embora transcendental e não genérica, porquanto se diferencia nos modos disjuntivos mas intrínsecos do finito e do infinito, do contingente e do necessário, tal significação de ser é, antes de mais, conceptual e não ontológica, exprime o requisito formal da não-contradição, o possível lógico e não o existente concreto. Abriria assim caminho, através do nominalismo, à prevalência moderna do conceito sobre o real e ao idealismo.
Perspetivas modernas e contemporâneas
Na modernidade, em que o problema gnosiológico se sobrepõe à metafísica, o conceito de analogia é secundarizado. Através do influxo de Suárez, o grande racionalismo vai adoptar o primado escotista do ens e da univocidade, privilegiando o ponto de vista abstrato da essência, entendida como possibilidade lógica, e o do conceito. Não rejeita a atribuição intrínseca, mas fundamenta-a no conceito de ente, enquanto comum ao finito e ao infinito, preparando assim o primado da ontologia e da filosofia transcendental sobre a teologia.
Sob o influxo do empirismo, que negava à inteligência um acesso ao ser em si, e alinhado com a crítica nominalista dos universais, Kant, não reconhecendo o alcance transcendente dos conceitos puros do entendimento – designadamente os de substância e causa, de maior impacto em metafísica –, vai negar a possibilidade desta última como ciência, restringindo o conhecimento ao estudo da conexão entre os fenómenos empíricos, isto é, à ciência. E é neste contexto, já epistemológico, da física que ele procede a uma reinterpretação da analogia. Ela perfaz, a seu ver, o conjunto de princípios ou regras que o entendimento estatui para a aplicação das categorias de relação aos fenómenos da sensibilidade, e que os determinam do ponto de vista da sua existência e da sua relação recíproca no seio do tempo (C. r. V., Anal. transc., III, cap. II, 3.ª secção). São elas: 1. A permanência ou duração da substância; 2. A sucessão de antero-posterioridade no seio da natureza ou relação de causalidade; 3. A interação universal de todas as substâncias em cada momento do tempo ou a sua simultaneidade segundo o princípio da relação recíproca.
Depois de Kant, a filosofia segue um de dois caminhos: ora privilegia a epistemologia e cai no positivismo, ora a metafísica, infletindo-a num sentido claramente idealista. E aqui o que vai prevalecer é a tendência monista e panteísta, portanto univocante, que subordina finito e infinito a um conceito abstrato de ser como possibilidade. É assim que Hegel, em particular, partindo do conceito vazio de ser, recíproco do nada, vai, pela negação, imprimir-lhe um movimento em direção ao concreto. Chega, desse modo, ao ente particular, o qual, por não igualar o ser, é de novo negado e superado numa síntese de ambos. Procedendo de negação em negação, de contradição em síntese, sob a égide da Ideia vai avançando até chegar a exaurir ou igualar o movimento da realidade à infinitude do ser. Unindo o começo ao fim do processo numa totalidade integrada de diferenças, põe termo, com o seu idealismo absoluto, ao modelo onto-teológico da metafísica, por que enveredaram os modernos com a prevalência do escotismo.
Na primeira metade do séc. xx, o tomismo é sujeito a uma ampla revisão crítica no sentido de um retorno à letra e ao espírito do fundador. Privilegia-se o diálogo com a modernidade, não só com o kantismo e o idealismo, mas também com a fenomenologia e as correntes existencialistas. Decerto sob o influxo de Heidegger, a questão do ser e da diferença ontológica salta para primeiro plano, propiciando uma leitura renovada dos textos. E, neste contexto, a analogia volta a estar na ordem do dia, apresentando-se como uma ferramenta indispensável no combate ao idealismo e ao imanentismo – formas modernas de panteísmo –, um pilar, em suma, da edificação de uma metafísica cristã, porquanto sublinha, na comunidade ontológica entre o mundo e Deus, uma diferença sempre maior. É assim que Przywara a elege como “forma-princípio” do catolicismo, medida da relação incomensurável entre o finito e o infinito, e ritmo escansão do próprio universo entre o devir da existência e a permanência no ser (Ibid., Analogia entis, 1932). Já o protestantismo, que nega, com Lutero, todo o conhecimento de Deus fora da revelação, vai recusá-la como princípio de conhecimento, preferindo a analogia fidei, que faz da fé condição suficiente do acesso a Deus.
Quanto a Heidegger, qual é a sua posição relativamente à analogia? Crítico da escolástica, da sua análise lógica do ser e do modelo onto-teológico, por proceder à inclusão de Deus num conceito geral de ser abstraído da criatura, tudo indica que parece excluí-la. E, no entanto, se virmos bem e a partir de uma conceção alargada da analogia – não enquanto medida comum ou comparativa entre realidades distintas, mas como relação de similitude e participação, subordinada a uma sempre maior dissimilitude –, o seu conceito de diferença ontológica não deixa de apresentar uma singular estrutura analógica, o que a habilita a constituir uma, senão mesmo a figura cimeira da analogia entis contemporânea. Com efeito, mediadora entre o uno e o múltiplo, a identidade e a diferença – que concilia, sem absorver ou reduzir, o primeiro no segundo (panteísmo) ou inversamente (panenteísmo) –, ela cruza o movimento horizontal e participativo do ente no ser com o movimento processivo-conversivo da realidade, sugerindo desse modo o dinamismo ontológico da realidade. Exprime a ação viva do Logos, que põe e dispersa para melhor recolher de seguida, concedendo autonomia e individualidade, tempo e espaço de jogo para o desempenho da liberdade. Dando uma prioridade absoluta ao ser na sua relação com o ente, que nada é sem ele, ela abre ao homem, criatura espiritual, um espaço de encontro com o Deus vivo, que se acerca do mais íntimo para o elevar acima de tudo e o habilitar a ser. Tal é, por isso, a nosso ver, a mensagem inscrita no seu último filosofema: a “quadratura” (Geviert) cósmica enquanto lugar do encontro e diálogo historial entre o “Divino e os mortais”.
Bibliog.: AUBENQUE, P., “Les origines de la doctrine de l’analogie de l’être”, Les Études Philosophiques, 1978/1; BARTH, K., Die Kirchliche Dogmatik I, 1, Zürich, EVZ, 1970; COURTINE, J.-F., Les Catégories de l’Être, Paris, P.U.F. “Epiméthée”, 2003; Id., Inventio Analogiae. Métaphysique et Ontothéologie, Paris, Vrin, 2005; HÖFFDING, H., Der Begriff der Analogie (Leipzig, O.R. Reisland, 1924); MONTAGNES, O.P., La Doctrine de l’Analogie de l’Être d’après Saint Thomas d’Aquin, Paris, Béatrice-Nauwelaerts, 1963; PRZYWARA, E., Analogia entis. Metaphysik, Einsiedeln, Johannes-Verlag, 1962 (trad. ital. Analogia entis, Milão, Vita e Pensiero, 1995); HEIDEGGER, M., Die Grundbegriffe der antiken Philosophie, Gesamtausgabe 22, Frankfurt, V. Klostermann, 1993 (trad. fr. Les Concepts fondamentaux de la Philosophie antique, Paris, Gallimard, 2003); Id., Aristoteles, Metaphysik IV 1-3, Von Wesen und Wirklichkeit der Kraft, Gesamtausgabe 33, Frankfurt, V. Klostermann, 1981 (trad. fr. Aristote, Métaphysique IV 1-3, Paris, Gallimard, 1991); Id., “Logos”, in Vorträge und Aufsätze, Gesamtausgabe 7, Frankfurt, V. Klostermann, 2000, pp. 211-234 (trad. franc. in Éssais et Conférences, Paris, Gallimard, 1958, pp. 249-278).
Mafalda Blanc
Analogia (II)
Analogia dá conta da forma de se falar a respeito de Deus e das realidades a Ele referidas. Coloca desde logo duas exigências fundamentais: por um lado, respeitar a transcendência absoluta de Deus; por outro lado, garantir a inteligibilidade do próprio discurso. Assim sendo, o tema da analogia encontra-se na raiz da experiência religiosa, não só por se referir à capacidade de a exprimir, mas também por significar a distância existente entre a criatura e o Criador. Ao mesmo tempo, é um dos temas que coloca de forma direta a questão a respeito da metodologia no labor teológico.
Na sua origem aponta uma proporção matemática, descrevendo um meio termo entre a total semelhança e a completa dissemelhança. Será elaborada pelos filósofos pré-socráticos e, particularmente no platonismo, torna-se via de acesso ao conhecimento a respeito do divino incognoscível.
Na teologia judaica e cristã, a analogia encontra o seu fundamento no versículo Sb 13, 5: “A grandeza e a beleza das criaturas fazem, por analogia, contemplar seu Autor”. Esta passagem rememorava nos autores antigos a consciência dos filósofos gregos segundo a qual o conhecimento das criaturas possibilitava o acesso ao conhecimento de Deus. A partir desta consciência, o tema da analogia desenvolve-se enquanto possibilidade do discurso acerca de Deus e das realidades divinamente referidas. De forma sintética, podemos dizer que a analogia se torna necessária para o discurso relativo aos mistérios da fé, quer seja o próprio Deus (Santíssima Trindade, Verbo incarnado, Espírito Santo), quer seja em relação às realidades que de alguma forma se referem a Deus ou são por Ele criadas (Criação, Igreja, Sacramentos, etc.). Na doutrina da Igreja encontramos uma definição muito clara dos limites da analogia: “Entre o Criador e a criatura não se pode observar tamanha semelhança que não se deva observar diferença maior ainda” (DH, 806).
No séc. xx, a reflexão em torno da analogia atingiu o seu ponto alto com a publicação dos estudos de E. Przywara no volume intitulado, precisamente, Analogia Entis. Nesta obra, o autor pretende articular a possibilidade do discurso teológico à luz das tendências da filosofia clássica, ao mesmo tempo que entra em diálogo com os elementos da filosofia contemporânea, procurando estabelecer um sistema epistemológico que compagine as afirmações do I Concílio do Vaticano e S. Tomás de Aquino. A sua proposta mereceu uma forte oposição do lado da teologia protestante, com palavras muito fortes de Karl Barth. Mais tarde, entre um e outro surgirá a reflexão de Hans Urs von Balthasar, que procura articular o pensamento de Przywara com a crítica de Barth, de tal forma que conduz a sua proposta rumo a uma solução cristológica: em Jesus Cristo encontra-se a analogia plena, na medida em que é Deus verdadeiro e homem verdadeiro.
O tema da analogia e, particularmente, o tema da analogia entis, coloca no centro da reflexão os limites do discurso acerca da realidade religiosa. Por um lado, na sua referência epistemológica (que podemos conhecer do Deus em que acreditamos?), por outro lado, na sua referência espiritual (como podemos interpretar os discursos acerca de experiência religiosa?). A resposta dada por Balthasar ao debate referido parece ser a mais fecunda: concentrar na própria pessoa de Jesus Cristo a referência para o conhecimento a respeito de Deus, sendo Ele manifestação divina em carne humana, e manifestação da humanidade enquanto elevada pela divindade.
Bibliog.: BALTHASAR, H. U. von, The Theology of Karl Barth, San Francisco, Ignatius Press, 1992; BARTH, K., Church Dogmatics, London, T&T Clark, 2009; BOULNOIS, O., “Analogía”, in LACOSTE, J.-Y. (dir.), Dicionário Crítico de Teología, São Paulo, Paulinas e Edições Loyola, 2004, pp. 120-123; BOUYER, L., “Analogía”, in BOUYER, L., Diccionario de Teología, Barcelona, Herder, 2007, pp. 70-72; FIGUEIREDO, R., Fundamentos para uma Teologia da Santidade, Lisboa, UCEditora, 2018, pp. 53-141; JOHNSON, K. L., Karl Barth and the Analogia Entis, London, T&T Clark, 2010; PRZYWARA, E., Analogia Entis, Michigan e Cambridge, Wiiliam B. E. Publishing, 2014.
Ricardo Figueiredo