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Abandono

Natureza do abandono

Na espiritualidade, o termo “abandono” refere-se à atitude do crente que coloca a sua vida e o seu destino nas mãos de Deus, para que Ele disponha de si segundo a sua vontade. O abandono autêntico só existe como fruto do amor e da confiança infinita em Deus e na sua providência. Não se trata, pois, de aceitar e submeter-se à vontade de Deus; isso não seria mais do que obediência e resignação. Também não se trata de entregar uma vontade vencida, à qual não resta mais do que ceder perante a inquestionável vontade de Deus. Se, como afirmámos, o abandono implica entregar a vontade ao Pai, isto só pode dar-se quando existe um amor acrisolado e maduro. Sem isto, o dom de si mesmo é impossível.

Além disso, o abandono supõe uma fé sólida, fundamentada na experiência da ação de Deus na própria vida, e que vai muito além de uma vivência religiosa ordinária. O crente deve ter experimentado a fidelidade divina e ter feito um longo caminho de fé. Só assim é possível entregar a própria vida incondicionalmente, com todas as eventuais consequências, nem sempre agradáveis para a condição humana. Isto é seguir Jesus, agir e viver como Ele.

 

Fundamento do abandono

O fundamento do abandono encontramo-lo na vida, ações e ensinamentos de Jesus, tal como no los apresentam os Evangelhos. Os acontecimentos narrados no seu nascimento e nos seus primeiros anos anunciam-nos já o que será toda a sua vida: o nascimento num pórtico em Belém, a fuga do Egipto, a vida de pobreza e simplicidade. Mas é em torno da sua Paixão e morte que se revela o extremo abandono que vive Jesus nas mãos do Pai. Na agonia no Getsémani, e no meio de uma intensa luta contra o desejo natural de escapar da morte, Jesus entrega totalmente a sua vontade ao projeto de Deus: “…que se faça a tua vontade e não a minha”. E na cruz, no meio dos sofrimentos mais intensos, e perante a proximidade da morte, coloca-se nas mãos do Pai e solta, num grito confiante: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito”.

Na sua pregação, Jesus ensinou também o abandono à providência do Pai, que conhece e está atento às nossas necessidades: “Não vos preocupeis com a vida, quanto ao que haveis de comer, nem com o corpo, quanto ao que haveis de vestir… O vosso Pai sabe que precisais dessas coisas” (Lc 12, 22 e ss.). O Pai ama-nos e por isso agirá em nosso favor, socorrendo-nos na necessidade. O discípulo deve também aprender a pôr nas mãos de Deus as suas inquietações e preocupações, como a sua própria vida, pois o Pai cuida dele (cf. 1Pd 5, 7-8). Escusado será dizer que o abandono não dispensa o esforço pessoal. Colocar-se nas mãos de Deus pressupõe fazer um esforço por procurar e fazer o necessário para que a vontade do Pai esteja presente nas nossas vidas.

 

O abandono na experiência mística

Para S. João da Cruz, o abandono é o caminho que deve percorrer o espiritual para chegar ao cume da perfeição e à união com Deus. Assim o declara nas seguintes frases: “Para tudo saboreares, não queiras ter gosto em nada. Para tudo possuíres, não queiras possuir nada. Para chegares àquilo de que gostas, hás de ir por onde não gostas. Para chegares ao que não sabes, hás de ir por onde não sabes. Para chegares ao que possuis, hás de ir por onde não possuis. Para chegares ao que não és, hás de ir por onde não és” (1S 1, 13). Consequentemente, sem o abandono, o espiritual não poderá alcançar a meta a que foi chamado: “Quando reparas em alguma coisa, deixas de te lançar ao todo. Porque para vir de todo ao todo, hás de negar-te de todo em tudo. E quando vieres a ter tudo, hás de tê-lo sem nada querer. Porque, se queres ter algo em tudo, não tens puro em Deus o teu tesouro” (1S 1, 13)

A experiência de Santa Teresa de Lisieux é muito iluminadora no que respeita ao tema do abandono. Apesar de ocupar um lugar fundamental na sua doutrina, e sendo que o ambiente familiar a predispôs em grande medida para ela, a atitude do abandono não aparece nos seus escritos antes de 1893, quando Teresa tem 20 anos. É a partir desta data que, depois de ter experimentado na própria pele o valor do abandono no seu processo espiritual e no chamamento que Deus lhe dirige, Teresa o integra na sua doutrina, como um conceito existencial e um caminho concreto de santidade. Experimentou inúmeras vezes a fragilidade e, ao mesmo tempo, o eterno amor de Deus. Isto move-a a aceitar, por fim, a sua própria impotência e a entregar-se a Jesus, pois é Ele o protagonista da obra santificadora, não ela: “O mérito não consiste em fazer nem em dar muito, mas sim em receber e amar muito… O que ela (Teresa) tem de fazer é abandonar-se, entregar-se sem reservar nada para si…” (Ct. 142).

Também a partir dessa época, o abandono fará parte da doutrina espiritual do “pequeno caminho”. Um abandono audaz e, por vezes, temerário, com o qual se coloca nas mãos do Pai para que atue nela, e com o qual lhe demonstra a sua confiança plena e o seu amor sem limites. E mais, o abandono englobará, pouco a pouco, toda a sua doutrina, e aparecerá como o único caminho que conduz à plenitude da vida com Deus: “Jesus compraz-se em mostrar-me o único caminho que conduz a essa fogueira divina. Esse caminho é o abandono do menino que adormece sem medo nos braços do seu pai…” (Ms. B 1rº). Para Teresa, o mais importante não são tanto as grandes obras que podemos realizar quanto o aprender a pormo-nos totalmente nas mãos de Deus: “Se todas as almas frágeis e imperfeitas sentissem o que sente a mais pequena de todas as almas, a alma da tua Teresita, nem uma só perderia a esperança de chegar ao topo da montanha do amor, pois Jesus não pede grandes façanhas, mas apenas o abandono e a gratidão” (Ms. B 1vº).

Por último, não podemos esquecer que, na vida e doutrina de Teresa de Lisieux, o abandono implica uma decisão vigilante: “Agora só me guia o abandono, já não tenho outra bússola”.

 

Bibliog.: Pourrat, Pierre, “Abandon”, in VILLER, Marcel et al. (dirs), Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique: Doctrine et Histoire, vol. I, Paris, Beauchesne, 1937-1995, pp. 2-49; GENNARO, Camillo, “Abandono”, in ANCILLI, Ermanno (dir.), Diccionario de Espiritualidad, vol. I, Barcelona, Herder, 1983, pp. 15-18; SAN JUAN DE LA CRUZ, Obras Completas, 9.ª ed., preparada por Eulogio Pacho, Burgos, Monte Carmelo, 2010; SANTA TERESA DE LISIEUX, Obras Completas, Escritos y Últimas Conversaciones, Burgos, Monte Carmelo, 1996; SIÓN, Víctor, “Abandono a la acción de Dios”, in ÁLVAREZ, Tomás e BLAT, Vicente (dirs.), Diccionario de Santa Teresa de Lisieux, 2.ª ed., Burgos, Monte Carmelo, 2003, pp. 13-23.

 

Danilo Ayala Changa

 

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