Noção
O termo “abismo” indica, normalmente, um lugar profundo cujo fundo não é visível, e por isso se aplica à profundidade dos mares ou aos infernos. De qualquer maneira, tem aparentemente uma conotação negativa, associando-se a um lugar tenebroso, escuro, perigoso, por vezes sinónimo do caos e também dos infernos.
Sentido bíblico
Assim aparece refletido no uso bíblico da palavra, que encontramos primeiramente no livro do Génesis, designando o caos que existe antes da Criação (Gn 1, 2) ou os abismos das águas que logo inundarão toda a Terra, como nos relata o dilúvio universal (Gn 7, 11).
Além destas conotações, outros textos bíblicos parecem sugerir ou identificar o abismo com o lugar dos mortos, como se se tratasse de uma espécie de inferno onde se corre o risco de cair após a morte. É o que parece sugerir o Salmo 71, 20, onde o salmista clama: “Voltarás a dar-me a vida, e dos abismos da terra me erguerás de novo”. Contudo, uma leitura contextualizada convida a, mais do que pensar num lugar indeterminado, identificá-lo com um estado psicológico-espiritual em que uma pessoa se sente perseguida e ameaçada pelos seus inimigos. É um grito de esperança e de triunfo. O abismo (ou precipício) pode corresponder à morte ou ao estado de reclusão a que se é sujeito pela injustiça dos inimigos.
Outro texto significativo quanto ao uso da palavra “abismo” é o Salmo 42. No versículo 7, diz-se: “um abismo chama outro abismo”. Também nesta ocorrência parece ser mais relevante o sentido espiritual, em que a pessoa procura ou aspira ao encontro com o Senhor. Daqui se derivará, posteriormente, uma perceção mais positiva e antropológica do abismo.
No Novo Testamento, deparamos com diversas referências, que o identificam com o lugar dos mortos (Rm 10, 7), a morada dos demónios (Lc 8, 31; Ap 11, 3.7; 20, 1-3), a separação intransponível entre os bons e os maus (Lc 16, 26), ou o lugar do tormento (Ap 9, 1-2).
E ainda que os textos não o afirmem explicitamente, é crença comum, e faz parte do Credo, que Jesus desceu ao abismo dos infernos entre a morte e a ressurreição. Os textos mais explícitos a esse respeito seriam os de Atos 2, 27 e Efésios 4 (8-9), onde Paulo se pergunta: “Que quer dizer ‘subiu’, senão que primeiro desceu aos lugares mais baixos da terra?”. O sentido desta descida de Jesus aos abismos do Inferno torna visível o seu triunfo sobre o poder da morte e do Inferno, ou seja, sobre todas essas realidades que ameaçam a eternidade do homem, a sua salvação. Este pensamento teológico terá uma grande incidência na espiritualidade cristã.
Na experiência mística e espiritual
Apesar do carácter muito negativo do termo na tradição bíblica, o abismo, na tradição espiritual cristã, assumirá outra série de conotações, que, em muitos casos, dizem respeito a uma perceção analógica da vivência espiritual interior do sujeito. Deste modo, como já se percebe, em parte, na experiência dos salmistas, o abismo costuma fazer referência a uma vivência interior da pessoa. É de tal maneira assim, que o abismo, tanto positivo como negativo, é percebido como esse lugar profundo da interioridade humana, onde se pode experimentar a queda no mais fundo de um poço escuro e sem saída; ou onde uma pessoa, depois de se ter submergido na sua própria miséria, se descobre salva e elevada até à luz. Trata-se de um desses paradoxos da vida espiritual vividos por muitos santos e místicos ao longo da história: seja como crise profunda, como noite, seja a queda no nada, no absurdo, no sem sentido… O certo é que, daqui, geralmente, da experiência do abismo interior da própria miséria, emerge a conversão. Um exemplo paradigmático é Santo Agostinho, no livro das Confissões: “[…] escuta a minha alma que grita das profundezas e ouve-a. Porque se os teus ouvidos não estivessem nas profundezas, onde iríamos, a quem gritaríamos?” (XI.2.3). É essa mesma certeza que expressa João da Cruz em Chama Viva de Amor, de que é no fundo da pessoa, no mais profundo centro da alma, que, juntamente com a noite mais escura, acontece a união com Deus.
Outros exemplos mais próximos de nós no tempo seriam Isabel da Trindade, que, influenciada pela linguagem mística de Ruisbroeck e comentando o verso do Salmo 42, 7, conclui, no seu texto El Cielo en la Fe: “‘Um abismo chama outro abismo’. Aí, no mais fundo, terá lugar o encontro divino, e o abismo do nosso nada, da nossa miséria, encontrar-se-á face a face com o Abismo da misericórdia, da imensidão do tudo de Deus”. É algo que se assemelha à experiência mística de Etty Hillesum, que confessa, no seu Diário: “Dentro de mim há um poço muito fundo. E lá dentro está Deus. Às vezes consigo lá chegar. Mas acontece mais frequentemente haver pedras e cascalho no poço, e aí Deus está soterrado. Então é preciso desenterrá-lo. Imagino que há pessoas que rezam com os olhos apontados ao céu. Esses procuram Deus fora de si. Há igualmente pessoas que curvam profundamente a cabeça e a escondem nas mãos, penso que essas procuram Deus dentro de si” (26 de agosto de 1941).
Bibliog.: CAPANAGA, V., “EL hombre abismo, según san Agustín”, Augustinus, vol. 20, 79-80, 1975, pp. 225-252; OTON CATALAN, J., Vigías del Abismo. Experiencia Mística y Pensamiento Contemporáneo, Santander, Sal Terrae, 2001.
Francisco Javier Sancho Fermín