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Abnegação

Podemos dizer que a abnegação é o compromisso pessoal do crente que assume, em liberdade, com plena vontade e sentido amoroso de aceitação, as dificuldades, desapegos, mortificações e sacrifícios envolvidos no caminho espiritual.

A abnegação tem a sua origem na tensão que existe entre o projeto de Deus para o homem, concretamente, a sua vocação, e a sua situação real e concreta, que se afigura frágil, débil e pecadora. Essa tensão só se resolverá de maneira positiva e saudável para o homem, se este aprender a acolher a sua verdade e se comprometer e esforçar por viver segundo o modelo que tem em Cristo. Por isso, não podemos dizer que a abnegação evangélica surge do desejo puramente ascético de, por exemplo, alcançar a vida eterna, mas sim do reconhecimento do chamamento de Deus a partir da eternidade, e da aceitação da própria verdade. Com um olhar positivo, é possível enfrentar e aceitar as dificuldades próprias da vida e do caminho espiritual, reconhecendo que as forças não nos vêm de nós mesmos, mas de Deus.

 

A abnegação na experiência mística

O termo “abnegação” não aparece nos escritos de S. João da Cruz, mas o seu significado surge amplamente refletido na doutrina ascética do santo doutor. Para João da Cruz, Deus cria o homem para a comunhão, numa vida em relação com Ele. O seu único objetivo é igualá-lo consigo mesmo, engrandecendo-o. Esta é uma vocação que supera todas as capacidades do homem e, no entanto, não se trata de algo utópico. Para o místico abulense, o homem pode chegar a esta comunhão já na vida presente, apesar da sua condição de decadência e temporalidade. Esta vocação torna-se realidade através da fé. Daí que toda a doutrina sanjoanina tenha como fim que o homem alcance, pela graça, a união em amor perfeito com Deus, que é possível alcançar nesta vida (cf. Pról. 1; 2, 4-5), pois esta é a sua vocação.

Contudo, na realização deste projeto de Deus, preparado desde a eternidade para o homem, a condição humana representa, até certo ponto, uma dificuldade, devido à condição pecadora do homem. Daí que o processo de conversão e integração pessoal que o homem deve realizar no seu caminho para Deus se converta numa tarefa difícil e complexa. Para João da Cruz, estes processos ocorrem adequadamente quando conjugam, na justa medida, a ação da graça e o esforço pessoal, a obra do Espírito e a colaboração do homem, que se deixa transformar numa nova criatura (S Pról. 3-5; S 1, 6, 4; 2, 5, 5; LlB 1, 16; 2, 32-36).

Ainda que a abnegação, pela sua natureza, implique renúncia e mortificação, aniquilação e negação, João da Cruz tem uma visão positiva da mesma. E isto porque é o próprio Deus que se aproxima do homem para o preparar para a união com Ele. E fá-lo através das virtudes teologais, que tocam entendimento, memória e vontade, e transformam assim o homem numa criatura nova. Desta maneira, Deus surge como o protagonista de todo o processo.

Para o Santo místico, a abnegação não se origina no homem simplesmente pelo seu desejo de provação. Para que seja verdadeira e dê fruto, a abnegação deve brotar do amor: “Porque para vencer todos os apetites e negar os gostos por todas as coisas, em cujo amor e afeição se costuma inflamar a vontade de as gozar, era necessária outra inflamação maior, de outro amor melhor, que é o do Esposo, para que, tendo a sua vontade e força neste, tivesse coragem e constância para facilmente negar todos os outros gostos” (1S 14, 2). Assim, a abnegação também surge como um dom de Deus para o homem, pois só a partir d’Ele e n’Ele é possível sair de si mesmo e vencer os apetites. Por este motivo, para João da Cruz, a abnegação nunca tem uma finalidade moral em si mesma, mas antes a de levar o homem à comunhão com Deus no amor.

O termo “abnegação” também não aparece nos escritos teresianos, mas o seu sentido aparece em outros termos usados por Teresa de Jesus, como “mortificação”, “renúncia”, “desapego”… Para a Santa, o princípio desta renúncia ou desprendimento não está na pessoa, mas sim no Evangelho. É o Senhor que nos chama a “negarmo-nos a nós mesmos” e a iniciar assim o caminho no seu encalço: “Abracemos com força a cruz e sigamos o Senhor” (Poesía 20, 1). Mas para fazer o caminho da abnegação, abraçando a cruz, é necessária “uma grande e muito decidida determinação para não parar antes de lá chegar, aconteça o que acontecer” (Camino 21, 2), pois a vocação de todo o cristão, e muito especialmente dos religiosos, é darmo-nos “inteiramente ao Tudo sem nos tornarmos partes dele” (Camino 8, 1). Não se trata apenas de ter renunciado aos bens, mas sim de se negar a si mesmo; sem isto, facilmente se pode cair no autoengano e na falsidade: “Desapegando-nos do mundo e dos nossos parentes, e encerradas aqui com as condições mencionadas, fica a parecer que está tudo feito e que não há nada por que lutar. Oh, minhas irmãs, não estejais seguras nem vos deixeis adormecer, que será como aquele que se deita muito tranquilamente, tendo trancado muito bem as suas portas, com medo dos ladrões, mas que os deixa entrar em casa. Já sabeis que não existe pior ladrão, pois ficamos nós aqui… e se não se anda com muito cuidado… contradizendo a vontade, há muitas coisas que nos tiram a santa liberdade do espírito, que pode voar ao seu Criador sem ir carregada de terra e de chumbo” (Camino 10, 1).

Para Teresa, esta premissa deve estar presente desde o início do caminho… não se pode seguir Cristo sem abnegação evangélica. É verdade que cada etapa tem as suas exigências, mas sempre as haverá, logo “é um grande fundamento começar com determinação de levar o caminho da cruz desde o princípio” (Vida 15, 13).

 

Bibliog.: GAITÁN, José-Damián “Ascesis sanjuanista”, in PACHO, Eulogio (dir.), Diccionario de San Juan de la Cruz, Burgos, Monte Carmelo, 2009, pp. 127-132; MARCHETTI, Salvatori Benedetto, “Ascesis”, in ANCILLI, Ermanno (dir.), Diccionario de Espiritualidad, vol. I, Barcelona, Herder, 1983, pp. 171-187; SAN JUAN DE LA CRUZ, Obras Completas, 9.ª ed., preparada por Eulogio Pacho, Burgos, Monte Carmelo, 2010; SANTA TERESA DE JESÚS, Obras Completas, 17.ª ed., preparada por Tomás Álvarez, Burgos, Monte Carmelo, 2014.

 

Danilo Ayala Changa

 

 

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