“Absoluto” (em latim, absolutus) significa, em primeiro lugar, “desligado” (de absolvere, “soltar”). Em segundo lugar, significa “perfeito”. Refere-se ao que, desprendido, desembaraçado, livre de todas as condições e limitações, solto, repousa em si mesmo desde si mesmo. Na intencionalidade da produção, a obra per-feita (i.e., que se per-fez, que se con-sumou) repousa em si mesma. A sua quietude é, porém, a plenitude de um movimento de génese. “Absoluto” refere-se, assim, ao acabado, ao perfeito. No pensamento grego, o absoluto expressa-se, mutatis mutandis, com as noções de tò hólon (“o todo”) e de tò téleion (“o perfeito”). Enquanto absoluto significa “independência”, se diz pela expressão “autárkheia” (“autossuficiência”). Absoluto é o que se basta a si mesmo, o que não precisa de outro para ser o que é.
Na escolástica e na mística cristã medieval, a noção de absoluto encontra-se expressa na noção de “aseidade”: Deus como ens a se (“ente a partir de si”) (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 3, a. 4). Na sua deidade, Deus caracteriza-se pelo seu ser a partir de si. Já a criatura, que o é somente na medida em que recebe de Deus o ser, é ab alio, “a partir de outro”, justamente do Criador (abaliedade). Todos os atributos do Deus criador, transcendente ao mundo (ens creatum), são como que repercussões da aseidade da sua deidade. O ser divino é o “ser mesmo” (ipsum esse). Como dizia Duns Escoto (Ordinatio, d. 36, n. 50), Deus não é tanto aquilo ao qual não repugna ser, i.e., aquilo que não é incompatível com o ser – isto vale para todo o ente, também para o criado –, mas Aquele que é “a partir de si mesmo o ser mesmo” (ex se ipsum esse). Deus, Ele mesmo, é o próprio ser. O seu ser é absoluto (NICOLAU DE CUSA, De Docta Ignorantia, II, 9). Ele pode dizer de si: “Eu sou quem sou” (ego sum qui sum: Ex 3, 14). A Ele pertence a entidade em omnímoda perfeição e em absoluto (SÃO BOAVENTURA, Itinerarium Mentis in Deum, V). Nele, o ser carece de todo o não-ser. Ele não tem o seu ser. Ele é o seu ser: Deus est sum esse (“Deus é o seu ser”). A sua deidade vige como a essência por excelência (Agostinho, Anselmo) e, precisamente, como essência superessencial (Pseudo-Dionísio Areopagita).
Deus não pode ser determinado a partir de nenhum modo finito de ser, de pensar, de dizer. É o que significa a tese segundo a qual “Deus não se encontra em nenhum género” (Quod Deus non sit in aliquo genero). O seu conceito repele todo o “acréscimo de ente, de existência” (additio entis, additio existentiae). Nele, “essência e existência são o mesmo” (Apud Deum essentia et existentia sunt idem). Este ente não vem de outro, não depende de outro para ser, não se deixa determinar, no seu ser, nem no nosso pensar e dizer, a partir de outro. Pode-se usar o nome “substância” para Ele? Não, caso o termo “substância” se refira a algo como um substrato (de acidentes). Sim, e de modo até mais excelente, caso “substância” se refira a algo como uma presença abissal. Assim é que Gregório de Nazianzo (Oratio, XXXVIII) e depois João Damasceno (De Fide Orthodoxa, I, 9) o evocam como “um oceano infinito de substância”. Sim, na medida em que o termo “substância” indique a essência à qual compete o ser “por si” (per se). Deus não somente é, i.e., existe, subsiste, em si e por si, mas a partir de si (Tomás de Aquino). Mais que a perseidade, é a aseidade que anuncia a sua deidade. A sua absolutidade entende-se, pois, como a sua autossuficiência no ser. Ele é o real realíssimo. Ele é “pura realidade” (actus purus) (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 2, a. 3 / Comp. Theol.).
O sentido de ser, pois, própria e plenamente, encontra-se em Deus. Em Deus, o ser é originário. Na criatura, é derivado. O ente criado é mantido no ser a partir do ser originário. A sua de-pendência é, pois, radical, ontológica. Deus é solto em si mesmo. A criatura, no seu ser, depende do vínculo que ela tem com o Criador. Desfazer este vínculo significa, para ela, voltar ao nada, ser aniquilada. Este facto é, para a mística medieval, especialmente para a mística franciscana, um motivo de louvor e gratidão. É a partir disso que se canta o “Cântico das Criaturas” (São Francisco de Assis). Deus transcende radicalmente a criatura. O seu ser, absoluto, difere radicalmente do ser da criatura, dependente. Não obstante, o ser de Deus não está distante do ser da criatura. Deus é mais íntimo à criatura do que ela a si mesma. É que o ser da criatura só se dá, só acontece, por comunicação divina. A criação é a “comunicação” (communicatio) do ser. Deus comunica o ser à criatura, que, desde si, nada é. E esta comunicação é contínua (creatio continua). Se assim não fosse, a criatura retornaria ao seu nada. A criatura é finita, i.e., ela só é a partir de outro. Ela precisa de outro para ser ela mesma, sempre, de termo a termo, i.e., do início ao fim. Todo o tempo. A criatura, é em participando do ser que Deus lhe comunica (participatio). Há identidade e diversidade entre o ser de Deus e o ser da criatura (analogia entis). Deus é o seu ser. A criatura tem o ser. Neste “ter ser”, depende de Deus, seu criador (analogia de atribuição intrínseca). Além disso, Deus atém-se ao seu ser, que é ser por essência, assim como a criatura se atém ao seu, que é ser por participação. Há, assim, uma semelhança de relacionamentos entre Deus e o seu ser e a criatura e o seu ser, ainda que o relacionamento com o respetivo ser seja, de cada vez, diverso (analogia de proporcionalidade) (TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 13).
A teologia escolástica, com a sua doutrina da analogia do ente (Tomás de Aquino), procura salvaguardar, assim, ao mesmo tempo, a transcendência de Deus em relação ao mundo e a imanência de todo o ente criado no ser divino (o ser da criatura não está ao lado ou fora do ser divino; não há ser ao lado ou fora do ser divino). Assim como a palavra, expressa, permanece a palavra de quem a expressou, assim também o ser criado, comunicado por Deus, permanece dádiva divina. Todo o ser criado é, assim, signum de Deus: “sinal”, i.e., sombra, vestígio ou imagem, de Deus (Boaventura de Bagnoregio). Todo o ser criado é ressonância do Verbum divino, i.e., de sua “Palavra” operativa, comunicadora de ser (Filho). A relação entre Deus e o criado é, pois, linguagem, logos, verbum. Só há o ser do criado graças à comunicação de Deus, à atuação da sua Palavra.
Que Deus se determine a comunicar o ser, i.e., a criar, deve-se não a uma necessidade divina, mas à sua livre bondade ou à sua bondosa liberdade, à sua vontade liberal, gratuita (Duns Escoto). A criação (a ação criadora) de Deus é uma realização do bonum diffusivum sui (“bem difusivo de si mesmo”). É a fecundidade ontológica do sumo bem. Assim como o substantivo “ser” evoca a unidade do ser divino, assim também o termo “bem” evoca a sua trindade (Boaventura de Bagnoregio). A Trindade é o sumo bem sumamente difusivo de si mesmo. A vida de Deus em Deus dá-se como a absoluta plenitude de ser, que é o amor. A identidade da unidade divina desdobra-se numa dinâmica sumamente difusiva de bondade, que vigora na geração, na filiação, na processão. O Pai é o fundo abissal silencioso e o princípio doador da deidade. O Filho é a Palavra da deidade. Ele é pura receção do ser da deidade. O Espírito é o contentamento da identidade absoluta desse Deus uno e trino, que é amor. É, por assim dizer, o sorriso de Deus. Foi o que intuiu Dante quando escreveu: “O luce eterna, che sola in te sedi, sola t’intendi, e da te intelletta ed intendente te ami ed arridi!” (“Ó luz eterna, que, só, repousas em ti mesma, só, te entendes e, por ti mesma entendida e entendente, te amas e sorris!”).
O bem circula eternamente na doação-receção dos divinos três e comunica-se temporal e livremente ao criado. O ser do criado é, pois, dádiva de uma doação divina marcada pala liberdade, pela “bondade” (bonitas), pela gratuidade. O ser do criado emerge, assim, da essência divina, e o seu emergir traz a marca da bondade e da perfeição desta essência. Na absoluta transcendência, Deus é o criador perfeito do mundo perfeito. Quem não tem uma visão turva e parcial, que colhe o mundo nas suas estruturas puras, que lê a Palavra de Deus no ser criado, transcende do mundo a Deus. Se todo o criado é uma expressão da Palavra de Deus, então todo o real é, na sua realidade mesma, sagrado. E o sagrado é realíssimo em todas as realizações do real.
“O ser é Deus” (esse est Deus), assim radicaliza Mestre Eckhart. A criatura, a partir dela mesma, nada é, i.e., é um nada. Daí a frustração que sucede a todo o apego que se volta à criatura esquecendo-se da sua criaturalidade. Por outro lado, como Deus, no seu carácter absoluto, não está em nenhum modo, embora esteja na fonte de todos os modos de ser das criaturas, pode ser evocado também como nada. Não se trata, certamente, de um nada privativo, muito menos de um nada negativo (que aniquila), antes de um nada positivo, transcendente, e criador. Toda a possibilidade, bem como toda a realidade da criatura, d’Ele provém. O ser é Deus. E, por outro lado, Deus é para si mesmo o seu próprio “não”. Face a todas as criaturas, de todo o seu possível e o seu real, Deus é o seu nada. Esta retração do ser de Deus no seu carácter abissal (fundamento sem fundamento, sem porquê, como dizem Eckhart e Angelus Silesius), esta sua inacessibilidade (São Francisco de Assis) e incompreensibilidade (frei Egídio de Assis), é a marca da sua identidade absoluta (deidade). Assinala o seu silêncio. É no não dito da sua linguagem que Deus é Deus, dizia Heidegger, evocando Mestre Eckhart (HEIDEGGER, 1949).
A aseidade de Deus, a sua deidade, é evocada por Eckhart com o termo “Abgeschiedenheit” (“desprendimento”). Em sentido ontológico (não psicológico, moral, ascético), “Abgeschiedenheit” expressa o carácter de ser separado, dividido. Expressa a diferença do ser de Deus, a sua identidade absoluta. Evoca a “limpidez” e a “soltura” (Lauterkeit e Ledigkeit) do ser na deidade. Expressa a radical diferença do ser de Deus relativamente ao criado, da sua identidade absoluta. Trata-se de uma identidade simples, que não só não nega, como diz sim a toda a identidade diferencial da criatura.
A retração da absoluta identidade do ser de Deus (deidade), porém, vige na e desde a doação fontal, inesgotável, do seu ser-amor, i.e., do seu ser trinitário (amante, amado, amor; Pai, Filho e Espírito Santo), doação que “ferve” e “transborda”, por assim dizer, na e como criação. Deus é amor (Minne). A criação é um feito da sua gratuidade, graciosidade, benevolência. Todo o ser do criado é dom do amor primeiro, sem porquê: um extravasamento do amor intratrinitário divino. A criação é uma repercussão da filiação. Trata-se de uma identidade originária, de onde emergem todas as diferenças. É anterior a toda a anterioridade e posterioridade das diferentes criaturas. Vige, por assim dizer, como silêncio de fundo, como berço, como um embalar de todo o criado. No todo do criado, porém, há um ente, cuja natureza é a de convir com o ser de todo o ente (Tomás de Aquino). A alma é, de certo modo, todo o ente (Aristóteles). É microcosmos. Batente da passagem da possibilidade de ser, repercussão “sin-tónica” constitutiva do mundo como mundo, i.e., como o todo do ente na sua revelabilidade. A alma só pode ser o todo, ou melhor, o lugar e tempo da irrupção do todo, a instância da eclosão do mundo, por ser nada. Apenas sendo o nada que ele mesmo é, apenas regressando ao nada da sua criaturalidade, é que o Homem se torna igual a Deus. Não se trata de querer ser igual a Deus contra Deus. Trata-se de querer ser igual a Deus segundo Deus, i.e., de regressar ao nada da sua própria criaturalidade e, assim, ser pura receção para o ser de Deus, como filho no Filho. Trata-se, por outro lado, de ser nada seguindo o nada de si de Deus, i.e., a sua liberdade. O ser de Deus é infinito, e o ser do criado é finito. Porém, no que respeita à aseidade da liberdade, não há diferença entre Deus e criatura. Há uma aseidade divina e uma aseidade humana. Esta aseidade chama-se liberdade. Há uma absoluteza infinita e uma absoluteza finita. A finitude humana é a absoluta concreção da liberdade, que deixa eclodir mundo. No seu fundo, a alma também é límpida e solta. É também abissal. É também indizível. A igualdade, porém, entre a alma e Deus reconduz-se a uma identidade, que é amor (ser filho no Filho). O que está aqui em jogo não é uma igualdade usurpadora, nem uma identificação arbitrária, mas a igualdade e a identidade que acontece entre os que se amam, os que se comprazem um no outro (relacionamento entre a alma humana e Deus, que se reconduz ao relacionamento de filiação).
O que deixa ser todo o outro não se deixa captar como um entre outros, como outro de outros, mas apenas como si mesmo. Toda a tentativa de determiná-lo como outro ou a partir de outro é liquidada no empuxo do seu retraimento. A identidade intensa e absoluta de Deus que diz a sua diferença radical foi evocada por Nicolau de Cusa como non aliud: “não outro”. Dizer que Deus é outro, até dizer que Deus é totalmente outro do que a criatura, é dizer ainda pouco. É preciso dizer mais: Deus é o não outro. Deus é Ele mesmo. Quem quer uma determinação de Deus, a partir de algo outro, não sabe o que quer. Só quem não sabe o que não quer irá afirmar que a proposição “Deus é Ele mesmo” é uma mera tautologia. Que Deus seja Ele mesmo como o não outro não é uma afirmação tautológica, nem uma mera negação infecunda. É, antes, o assinalar do seu mistério absoluto. Este dizer apenas assinala a ausência positiva do mistério absoluto de Deus, que se dá como retraimento, como ocultamento, como inefabilidade.
Deus e mundo não podem ser determinados a partir de uma ideia comum de ser. Nem Deus, na sua identidade absoluta, pode ser captado a partir da criatura. Deus é o ente absoluto, que tem o seu ser em si mesmo. “Deus est absolutus” (“Deus é absoluto”), diz Nicolau de Cusa (De Docta Ignorantia, II, 9). Ele não é um, mas o ente. A determinação ser não lhe advém a partir da distinção com outro ente, muito menos com a distinção em referência ao não-ente (já que “ente” significa tudo o que não é nada). Deus, na sua diferença radical, i.e., na sua identidade absoluta, é livre de toda a distinção. Ele, nele mesmo, a partir dele mesmo, é a plena positividade e determinidade do ser. É, pois, absoluto. É aquilo que não pode ser delimitado por nada de outro. “Absolutidade” significa, agora, não “aliudidade”. Este carácter de ser – a aliudidade – é, antes, a característica do ser criado. Cada criatura é ela mesma, não sendo outra. É ela mesma esta aqui, não sendo todas as outras. A sua identidade diferencial não é uma identidade simples, absoluta, mas sim uma identidade diferencial, em que nenhuma coisa é tudo, em que cada coisa é o que ela é, não sendo outra. A criatura precisa da negatividade e da alteridade para ser o que ela é na sua identidade. Cada criatura só pode ser determinada no conhecimento mediante comparação, visto que ela apenas é o que ela é, numa rede de relações com o que ela não é. Deus, porém, sendo absoluto, é incomparável. Em Deus dá-se a identidade plena e simples de ser e ente. É uno e único. Na criatura há uma não coincidência de ser e ente. Nenhuma ente criado traz em si a plenitude do ser. Cada uma realiza apenas em parte as possibilidades de ser. Daí a pluralidade das criaturas. Tudo isso indica a finitude do ser criado. Já em Deus o ser propriamente coincide com o ente propriamente dito. A identidade de ente e ser dá-se de modo puro e simples. É desse ser, que é ente, pura e simplesmente, que emerge todo o poder-ser ou poder-tornar-se de toda a criatura. A criatura é, pois, determinada pela diferença entre ser-possível e ser-real. No criado, todo o real é a realização de um poder-ser. O que não pode ser não é. O mundo é uma finita infinitas (“infinidade finita”). Enquanto nada lhe falta e enquanto ele não se distingue de outro criado (por ser, justamente, o todo do criado), ele pode ser dito “infinito”. Porém, porque ele só tem a sua infinidade enquanto é limitado, por ser criado, i.e., por ser a partir de outro (do incriado), ele é dito “finito”. Deus, porém, é infinito em sentido pleno e próprio. Ele foge a toda a proporção. O infinito enquanto infinito é incomparável, portanto ignoto. O Homem só pode alcançar Deus alcançando a “douta ignorância” (docta ignorantia), que é o reconhecimento consciente da nesciência no próprio seio da ciência. Ela perfaz tanto o princípio quanto o fim de todo o esforço do conhecimento humano.
A filosofia investiga o ente no seu ser, o ser na sua unidade e a unidade numa causa primeira e última. Com o encontro da filosofia e do cristianismo, a causa primeira e última tornou-se o Deus da revelação cristã, que, na sua infinidade, cria o universo. A unidade de todas as coisas criadas enraíza-se na unidade infinita de Deus. O ser vige, então, como um infinito processo de unificação. A modernidade é um processo de repercussão desta experiência e compreensão do ser. O método da dúvida de Descartes, o método transcendental de Kant, a dialética do absoluto de Hegel, e mesmo a vontade de querer de Nietzsche, são repercussões desta experiência e compreensão ontológicas. Kant subtrai o absoluto do conhecimento teorético e atesta a sua experiência apenas na esfera da razão prática (ainda que de modo formal). O idealismo alemão é a consumação da metafísica, que, é, fundamentalmente, metafísica do absoluto. Como surge, porém, nesta metafísica do absoluto o absoluto da metafísica? Fichte pretende encontrar o absoluto no eu puro producente. É algo de último e de omniabrangente. Como tal, não é nem saber nem ser (correlato ao saber), nem a identidade, nem a indiferença de ambos, mas é no seu todo, de modo puro e simples, nu e solto, o absoluto. Schelling, por sua vez, concebe o absoluto como a unidade primigénia de sujeito e objeto, de natureza e espírito. Para Hegel, o absoluto é desligado, desprendido, não referido a algo de outro, mas, ao mesmo tempo, abarca tudo. Absoluto é o espírito, que sai de si, que se exterioriza, que se aliena, na natureza como no seu outro, mas que na História volta a encontrar-se a si mesmo no seu saber absoluto, em cujo “resultado” o absoluto é verdadeiramente o absoluto. O absoluto é, fundamentalmente, o absoluto da razão. A lógica é uma teologia ontológica do absoluto. Aqui a metafísica alcança o seu fim, i.e., o termo da sua plenitude de desdobramentos, mas também o seu exaurimento e a sua necessidade de superação. Hoje, a metafísica do absoluto replica-se, de modo diverso, no sistema de controlo do mundo técnico-científico, regido pelo afã de produção total, que encontra na cibernética o saber unificador.
Embora a tendência da metafísica do absoluto como metafísica da racionalidade absoluta seja hoje a predominante, no pensamento moderno há também uma corrente, por assim dizer, apócrifa que está muito bem representada por Pascal e Kierkegaard. Pascal, com o seu espírito de fineza e a ordem do coração ou da caridade, aponta um caminho para o absoluto de Deus da experiência cristã que escapa à racionalidade do espírito geométrico. Um descobrimento puramente racional, filosófico-metafísico, de Deus é incerto e inútil para responder à busca de salvação que impulsiona o coração, que sofre com o contraste entre grandeza e miséria humanas. A experiência da noite de 22 para 23 de novembro de 1654 evidenciou-lhe a diferença entre o “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, de Jesus Cristo” e o Deus “dos filósofos”. O absoluto de Deus não pode ser o absoluto da razão absoluta. O mistério infinito de Deus só se abre à “lógica do coração”. Já Kierkegaard, de modo semelhante, encontra unicamente na fé o relacionamento apropriado do Homem para com o absoluto de Deus. A fé cristã não é o refúgio numa crença cultural, não é a comodidade da visão de mundo da cristandade. A fé é, antes, uma aventura na qual o Homem deixa para trás toda a comodidade e segurança, se abre e se expõe ao absoluto do Deus da revelação, que se apresenta como o paradoxo do Cristo, Deus-homem, o crucificado.
O absoluto da metafísica e a metafísica do absoluto dos modernos terminam numa ontologia sem ser e numa teologia sem Deus. Soa a hora e a vez da “morte de Deus” e do “niilismo” (Nietzsche). A morte de Deus, como mostrou Heidegger, é a morte do Deus da metafísica. Com ela, o pensamento é impelido a renunciar ao absoluto da metafísica e a colocar-se no silêncio da espera e na espera do silêncio, em que, de repente, esteja por vir o novo desvelar do horizonte do sagrado. A espera do silêncio, porém, não é uma passividade resignada. É, antes, a dinamização de um salto. Visto da perspetiva da metafísica do absoluto da racionalidade, surge como um salto no abismo, pois é um salto que salta para fora da estrutura lógica do pensamento, para uma outra experiência de um pensar a serviço da linguagem do ser, i.e., do seu silêncio. A poesia e o pensamento do silêncio põem-se na escuta do apelo deste silêncio. Aguardam o “Deus vindouro” (Hölderlin). Heidegger acena para a figura do “último Deus”. Quiçá esteja em jogo uma outra experiência do sagrado, como transcendência da transcendência, retraimento do retraimento. O absoluto de Deus não surge aí como poder, mas como fraqueza e ternura da vida, como ser-servo, como pobreza e humildade de um Deus cuja deidade é amor. Esse Deus não tem outro absoluto que o amor humilde. O absoluto dá-se, assim, no pudor do mistério de um Deus criança, homem sofredor, pão. É o que São Francisco de Assis descobriu como “Altíssima Pobreza” ou “Senhora Pobreza”, no núcleo da Boa Nova da mensagem de Cristo ou do Cristo-mensagem. A revelação do absoluto de Deus na pobreza e como pobreza talvez seja algo ainda por descobrir, e desta descoberta depende o porvir do humano e da Terra.
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Marcos Aurélio Fernandes