O conceito de afetividade é inseparável dos substratos: soma (corpo), psique (alma, mente, sistema nervoso), nous (intelecto), pneuma (espírito); liga-se a reações a e relações com objetos e pessoas. Os conceitos complexos são elaboração de autores antigos e atuais: gregos, bíblicos, cristãos; teólogos, filósofos, psicólogos, neurocientistas… A afetividade, ao nível do substrato neurovegetativo de emoções ou alterações reativas a estímulos orgânicos (cerebrais) e a exteriores, exprime-se por reações de cólera, medo, prazer, atração, agressão e fuga mensuráveis, associadas a sentimentos, conhecimentos e comportamentos. As emoções, sentimentos e afetos, enquanto sentidos e sabidos pelo sujeito, são acessíveis à introspeção e extrospeção, espontâneas e provocadas, e à consciência (“consciencização”) e memória. Estas experiências associam-se e diferenciam-se segundo a intensidade, os objetos e as pessoas. O corpo-cérebro-psique-mente-espírito, enquanto sentires e saberes, reage e torna-se consciente, avalia-se. A função de consciência (“consciencização”), eu-pessoa, além de emoções, sentimentos (afetos), estados mentais, memórias, avaliações e o eu, o ser, o sentir (bem-estar, mal-estar) e o saber. O corpo-eu-pessoa é uma unidade viva funcional parcialmente incompreensível, por si própria, mas sabe que existe no espaço e no tempo com autonomia, relação e autoestima, sendo sujeito de querer e de escolhas.
Afeto e afetividade, etimologicamente, dizem relação ad, para; e ação de facere e afficere, afetar e mudar reciprocamente as pessoas, por natureza, relacionais e transcendentes. Entre homem e mulher intensificam-se os afetos-emoções erótico-sexuais. Com efeito, os afetos são experiências de sentir e conhecer, de atração/rejeição, agrado/desagrado, simpatia/antipatia, alegria/tristeza, amor/ódio, diversificadas pela afinidade e personalidade dos relacionados. A sua intensidade depende das emoções e dos seus objetos; os afetos são mais duradoiros do que as emoções. Oscilam, alternam-se e predominam como estados de humor (sentimentos de si, mood, state of mind, em inglês). Variam de forma normal ou desviada por euforias, hipertimias, hipotimias depressivas, estados de apatia e distimia. Os seus transtornos e sintomas são descritos com inúmeros termos.
Na espiritualidade e mística judeo-cristãs, a afetividade assume relações transcendentes de fé. A pessoa vive estados afetivos, estados de consciência, contemplação e êxtase, associados a polos biopsicossociais (sistema nervoso) e a polos transcendentes: espíritos criados (anjos, demónios, pessoas, vivas e falecidas), Nossa Senhora, Jesus Cristo e o próprio Deus. As dimensões dos fenómenos místicos, êxtases, visões, aparições e revelações, exigem discernimento científico, histórico, psicológico e teológico, rigorosos, para chegar a juízo de credibilidade. É crucial a exclusão de patologias, alucinações, histerismo e mitomania. Os dois polos – a visão, a audição e o sentir dos videntes, por um lado, por outro, o aparecido, as locuções/mensagens, aparições – precisam de avaliação interdisciplinar para discernir o equilíbrio psicológico e a credibilidade dos videntes relativamente aos objetos/imagens interiores e exteriores. O discernimento das relações afetivas distingue a autenticidade das experiências espirituais e místicas das patológicas e imorais. As alucinações psicóticas, ilusões mitomaníacas e as mentiras intencionais anulam o valor das experiências. Os peritos precisam de ser creditados na competência científica e na credibilidade moral. Ao nível da religião cristã, a Bíblia (Evangelho) é o livro de revelação fundacional com critérios de referência para toda a cultura do Ocidente e da humanidade.
Bibliog.: DAMÁSIO, António, Sentir & Saber, A Caminho da Consciência, Círculo de Leitores 2020; FIORES, Stefano de e GOFFI, Tullo (dirs.), GUERRA, Augusto (adap. ed. espanõla), Nuevo Diccionario de Espiritualidad, Paulinas, Madrid, 1985; GAMEIRO, Aires, Manual de Saúde Mental e Psicopatologia, 4.ª ed., Porto, Salesianas, 1989; LAURENTIN, René e SBALCHIERO, Patrick, Dizionário delle “apparizioni” della Vergine Maria, Roma, Edizion ART, 2010; LAURENT, René et DEBRISE, François-Michel, La Vie de Marie d’après les Révelations des Mystiques, Paris, Presses de la Renaissance, 2011; POROT, Antoine, Manuel Alphabetique de Pshychiatrie, 4.ème éd., Paris, PUF, 1969.
Aires Gameiro
Afetividade
Somos seres criados para a relação, para o contacto, e a afetividade é a melodia de fundo que traz calor e humanidade a cada encontro, a todos os relacionamentos. A afetividade é, ao mesmo tempo, uma necessidade e uma capacidade de amor. Quando vimos ao mundo, a primeira coisa que acontece é haver alguém a estender as suas mãos para nos receber. Alguém nos toca quando começamos a existência e também seremos tocados uma última vez, um dia. É o amor experimentado na infância de um modo especial, partilhado e desenvolvido ao longo de toda a vida, que nos forma. O nosso corpo está feito para mostrar afeto, para o dar e receber, e a carência de afeto na infância pode fazer cambalear o que nos constitui como pessoas. Quando os pais, os primeiros cuidadores, tocam a criança, vão tecendo para ela um mundo de carícias necessárias e seguras que preparam a relação com os outros.
A afetividade e a ternura que expressamos através do nosso corpo situa-nos nesse movimento que acompanha impercetivelmente a nossa existência, e sem o qual seria impossível subsistir: o de dar e receber, o de entregar e receber com amor. Não nos bastamos a nós mesmos. A afetividade mantém-nos na vida, pois, sem afeto, morreríamos, e esta bagagem que vamos recebendo em forma de contacto amoroso irá acompanhar-nos ao longo da viagem da existência.
Expressar a nossa capacidade de afeto é mais do que um sentimento, é a qualidade da nossa presença a respeito dos outros e a realidade a que queremos permanecer abertos, permeáveis. A afetividade transmite-se com a pele, e com todos os sentidos, calor e contacto, proximidade, cuidado, afirmação, confiança, intimidade… desdobrando assim o desejo de amor que habita em nós.
Toda a vida nasce da libertação em profundidade das nossas forças afetivas; tratar de as vivificar, fazê-las mais profundas, alimentá-las, é preparar-se para o encontro definitivo com Deus (cf. BLANCH, 2007). O jesuíta belga Egide van Broeckhoven subscreve esta afirmação, ao descobrir que a experiência do amor de Deus e a sua experiência de amizade com os pobres se alimentam e amadurecem reciprocamente.
A vida humaniza-se na medida em que o seu fluxo afetivo pode verter-se em gestos concretos na relação com os outros. A afetividade é o modo que Deus tem de nos chamar à comunhão com os outros, inclui a capacidade de se relacionar com os demais, com calor emocional, empatia, intimidade e compaixão. Na encruzilhada virtual que nos mantém permanentemente conectados, precisamos de uma disciplina do tempo e dos sentidos, para que o “abraço da Internet” não nos tire a presença: o olhar e o contacto de que todos os encontros necessitam.
A nossa vida afetiva desenvolve-se quando o carinho e a alegria fluem; quando o sofrimento se impregna de companhia e ternura, porque é o cuidado com o corpo do outro o que determina o nosso vínculo com Deus (cf. Mt 25, 31-46). O corpo do ferido e o corpo do amigo tornam-se territórios sagrados onde aprendemos a amar e amadurecemos humanamente. Na medida em que a afetividade se liberta em nós, sentimo-nos vivos, e tornamo-nos homens e mulheres vivificadores.
Bibliog.: MENDONÇA, J. T., Hacia una Espiritualidad de los Sentidos, Fragmenta Editorial, Barcelona 2016; NORONHA JORDAO, P., Tan Frágiles y tan Amados. Una Pedagogía para la Libertad, Santander, Sal Terrae, 2023; RAMBLA BLANCH, J. M., Dios, la Amistad y los Pobres. La Mística de Egide van Broeckhoven, Jesuita Obrero, Santander, Sal Terrae, 2007.
Mariola López Villanueva