Amigo dos pobres e amante da natureza, São Francisco de Assis viu toda a Criação intimamente interconectada. A sua visão espiritual e mística ilumina o caminho que a humanidade tem de seguir para evitar o espectro de um cataclismo socio-ambiental irreversível. Numa afirmação da relevância essencial da visão de São Francisco para os nossos dias, Jorge Mario Bergoglio escolheu o nome de Francisco quando se tornou o 266.º Papa da Igreja Católica.
O Papa Francisco transita entre o nível espiritual e o nível de uma abordagem prática que resulta da sua profunda identificação com os problemas das pessoas comuns, especialmente das mais desfavorecidas. Na encíclica Laudato Si’ Sobre o Cuidado da Casa Comum (maio de 2015), ele oferece a todas as pessoas de boa vontade no mundo uma análise lúcida e rigorosa da profunda dupla crise, ambiental e social, vivida na contemporaneidade. A sua análise realça o grande fosso que separa as boas intenções da cooperação para o desenvolvimento dos seus impactos concretos, que são muitas vezes prejudiciais para os direitos humanos e para o ambiente. Um dos problemas que identifica é que os centros de poder em que as decisões são tomadas ignoram as realidades locais das populações. Segundo a encíclica, o sofrimento está insuficientemente representado nos programas de desenvolvimento, embora afete milhares de milhões e pessoas. Não devemos mais ignorar as gravíssimas injustiças sociais e devemos ouvir “tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”(# 49).
A cooperação para o desenvolvimento criticada pelo Papa Francisco não visa os pequenos projetos de ajuda que, em consulta com as populações, respondem às suas necessidades reais e são amigos do ambiente. Com efeito, a vasta maioria dos financiamentos para o desenvolvimento não decorre desta maneira. Longe das populações, são banqueiros, burocracias e tecnocratas que tomam as decisões que refletem os seus próprios interesses e pouco têm a ver com o clamor da terra como o clamor dos pobres. Os grandes bancos multilaterais de desenvolvimento estão à frente no financiamento público na ordem de muitos milhares de milhões de dólares por ano. O mais conhecido destes bancos é o Grupo Banco Mundial, estabelecido juntamente com o Fundo Monetário Internacional, depois da Segunda Guerra Mundial, e com sede em Washington. E o mais recente ator a emergir é o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, criado por e sediado em Pequim. O Estado português é sócio de ambos estes bancos e cada um dos seus contribuintes coopera nos investimentos feitos.
Nos anos 90 do séc. xx, a sociedade civil começou a alertar para situações específicas de investimentos feitos por estes bancos, que estavam de facto a contribuir para aumentar a pobreza, os desequilíbrios socais, a degradação ambiental e a injustiça. O financiamento de grandes barragens hidroelétricas na Índia, programas de despejo forçado de pequenos agricultores na Indonésia ou a construção de estradas na Amazónia contribuíram para a violação de direitos humanos e a destruição ambiental. A pressão pública gerada em torno deste tipo de investimento mal concebido levou os bancos multilaterais a adotar a linguagem do desenvolvimento sustentável. Mas, apesar das declarações de boas intenções, o modelo de desenvolvimento seguido pelos bancos multilaterais continua a basear-se no paradigma de um crescimento económico e tecnocrático assente na deificação dos mercados, no uso intensivo de energias fósseis e na extração de recursos naturais.
Depois de décadas de projetos de desenvolvimento deste tipo, a grande maioria da população mundial corresponde àqueles a que a encíclica Laudato Si’ chama de “excluídos”. Por exemplo, a riqueza em recursos naturais do continente africano tem trazido poucos benefícios à maioria dos seus povos. Pelo contrário, muitas vezes facilita a corrupção e degrada o ambiente de que a sobrevivência da maioria depende de forma direta. Não surpreende que se fale em maldição dos recursos neste contexto. A construção de infraestruturas necessárias à exportação destes recursos é muitas vezes financiada pela cooperação para o desenvolvimento. A justificação é que o investimento vai gerar emprego e assim reduzir a pobreza. Mas o crescimento económico não beneficia todos os estratos sociais. A crise pandémica da Covid 19 pôs em relevo que a maioria da população sofre pela falta de condições para satisfazer necessidades básicas, como ter acesso à água limpa. Imagens trágicas de migrantes desesperados em embarcações precárias no meio do Mediterrâneo são um símbolo do falhanço do modelo seguido.
Falta na contemporaneidade um escrutínio sistemático dos impactos sociais e ambientais das políticas e dos investimentos dos grandes bancos de desenvolvimento. Precisamos, com urgência, de políticas e investimentos em desenvolvimento que ponham o respeito pelos direitos humanos no seu centro. A encíclica Laudato Si’ apela a que se dê no debate um lugar privilegiado às populações que são os supostos beneficiários do desenvolvimento, e realça a necessidade do monitoramento constante do bom uso dos financiamentos. Em resumo, “É necessário haver sinceridade e verdade nas discussões científicas e políticas, sem se limitar a considerar o que é permitido ou não pela legislação” (# 183).
Bibliog.: Papa Francisco, Encíclica Laudato Si´ – Sobre o Cuidado da Casa Comum, 24 de maio de 2015;
ESCRITÓRIO DO ALTO COMISSÁRIO PARA O DIREITOS HUMANOS, News Release, The World Bank is a Human-Rights Free Zone U-N. Expert on Extreme Poverty Expresses Deep Concern, Genebra, 29 de setembro de 2015; HORTA, Korinna, “Infrastructure Projects – Paying the Price for Development”, Revista Development + Cooperation, Frankfurt, September 2020.
Korinna Horta