Derivando etimologicamente do vocábulo grego allegoría, que significa “dizer um outro”, o termo alegoria designa uma figura da retórica que corresponde à representação indireta de uma coisa ou ideia, utilizando outra que disfarça a ideia representada. A alegoria está, desta forma, associada ao sentido oculto que uma ideia ou figura concreta representam, sendo esse o seu verdadeiro sentido. O primeiro testemunho de definição do termo remonta a Demétrio de Faléron, em cerca de 270 a.C. Na Antiguidade, o termo alegoria, que substituiu no período helenístico o termo hypónoia e cujo significado era “significação oculta”, remete para a representação de um significado oculto sob a aparência de outro. Por outro lado, o termo alegorese, que significa interpretação alegórica, diz respeito a um método interpretativo dos mitos, sendo que nestes as figuras míticas personificavam abstrações de princípios morais. No séc. vi a.C., Teágenes, da cidade de Régio, foi um dos primeiros estudiosos a dedicar-se à interpretação alegórica dos escritos homéricos. Para Teágenes, tal como para Aristarco de Samotrácia (215-143 a.C.), era necessário adotar um método interpretativo que fosse além do sensus litteralis e desse conta do significado oculto daqueles escritos. Segundo Goulet (2005), o conceito de alegoria na Antiguidade implicava assumir que o verdadeiro sentido da alegoria foi intencionalmente ocultado. Além disso, este sentido oculto pode não ser compreendido numa leitura superficial, mas deve ser passível de interpretação numa leitura aprofundada do texto. A alegoria pressupõe, desta forma, a rejeição do sentido literal e a existência de um sentido oculto coerente.
São múltiplos os exemplos de textos literários, filosóficos e religiosos que atestam o recurso à alegoria, sendo também, por isso, um dos recursos retóricos mais estudados ao longo da história. Entre outras, podem referir-se as alegorias mitológicas da Antiguidade, as alegorias de Platão (V a.C.), como é o caso da Alegoria da Caverna, da obra A República (livro vii), na qual o filósofo grego alegoriza os conceitos de verdade e conhecimento. No âmbito da cultura católica, a Bíblia é o testemunho mais notável, tendo sido este o livro que maior influência exerceu durante toda a Idade Média cristã. Durante e após esse período, a linguagem alegórica bíblica permeou o exemplum e o milagre da prosa medieval, bem como a hagiografia, isto é, as narrativas das vidas dos santos. A alegoria é também pano de fundo dos autos e mistérios vicentinos, como no caso do Auto da Barca do Inferno (1517), de Gil Vicente, no qual o dramaturgo representa alegoricamente o juízo final das almas, utilizando diferentes elementos e figuras, como, por exemplo, a representação alegórica dos caminhos que conduzem as almas à salvação ou perdição através das barcas, bem como a alegorização do mal e do bem nas figuras do Diabo e do Anjo. Um outro exemplo em português é o sermão religioso, género de intenção religiosa e moralizante de grande popularidade durante a Idade Média. Porém, foi no período barroco, já no séc. xvii, e com a obra de P.e António Vieira, que o sermão religioso adquiriu maior prestígio. No Sermão de Santo António aos Peixes (1654), o pregador, tendo como ponto de partida um versículo das Sagradas Escrituras, “Vós sois o Sal da Terra” (Mt 5, 13), sob a forma de alegoria, dirige o seu discurso ao mar e prega alegoricamente aos peixes para representar e criticar os pecados do seu auditório (os homens).
Bibliog.: impressa: Bíblia Sagrada, 74.ª ed. da Bíblia Ave Maria, trad. de Monges de Maredsous e rev. José Pereira de Castro, Centro Bíblico Católico (Brasil)/Editorial Missões Cucujães; BRISSON, Luc, “How Philosophers saved Myths. Allegorical Interpretation and Classical Mythology”, L’Antiquité Classique, t. 75, 2006; BUFFIÈRE, Félix, Les Mythes d’Homère et la Pensée Grecque, Paris, Les Belles Lettres, 1956; GOULET, Richard, “La méthode allégorique chez les stoïciens»”, Les Stoïciens, Études sous la direction de Gilbert Romeyer Dherbey, réunies et éditées par Jean-Baptiste Gourinat, Paris, Librairie philosophique J. Vrin, 2005, pp. 93-119; PÉPIN, Jean, “Mythe et allégorie: les origines grecques et les contestations judéo-chrétiennes”, Revue de l’Histoire des Religions, t. 159, n.º 1, 1961, pp. 81-92; PLATÃO, A República, 15.ª ed., introd., trad. e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2017; VIEIRA, Padre António, Sermão de Santo António aos Peixes, Porto, Porto Editora, 2014; VICENTE, Gil, Auto da Barca do Inferno, Porto, Porto Editora, 2014; digital: OLIVEIRA, Loraine, “A interpretação alegórica de mitos: das origens a Platão”, Mirabilia: Electronic Journal of Antiquity and Middle Ages, n.º 24, 2017, pp. 1-22: https://www.raco.cat/index.php/Mirabilia/article/view/328518 (acedido a 03.11.2020).
Rute Rosa