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Alquimia

Arte hermética, tendo a sua origem sido atribuída miticamente a Hermes Trismegisto. A definição de alquimia é muito complexa, dado que se trata de uma prática polifacetada, de múltiplos aspetos, influências e utilidades. Além disso, a sua realidade como fenómeno histórico apenas se relaciona com a ideia que dela se tem, tanto popularmente como, inclusivamente, em muitos estratos da Academia.

A alquimia reúne entre os seus objetivos fins de investigação química, juntamente com analogias desses processos materiais com possíveis desenvolvimentos psicológicos, e também equivalências teológicas e cosmológicas, para além da sua aplicação prática em corantes, pigmentos, metais, tratamento de pedras preciosas e muitos outros usos. Os alquimistas podem ter enfatizado um aspeto ou outro – Paracelso, a medicina, Boyle, a química, Atwood, a espiritualidade –, ainda que, geralmente, os praticantes tenham tentado indagar acerca de todos os aspetos, à vez: materiais e espirituais.

Propõe uma leitura mística do mundo físico, na qual se produz uma “morte” e “ressurreição” da prima materia, depois de ser purificada, o que leva a que se tracem paralelismos entre o Deus no interior e o Deus no mundo, num processo de desvelamento de ambos, no momento em que se obtém a panaceia, ou Pedra filosofal; tudo isso, originariamente, mediante operações químicas. O sentido da transmutação seria o de mostrar o movimento que vai da pluralidade à unidade subjacente. Embora se trate de operações químicas, o facto de que nos tratados apareçam referências a ouro, prata, mercúrio, chumbo, cobre e outros não implica que se trate das substâncias químicas, estabelecendo-se amiúde uma diferença entre a substância corrente e a “filosófica” ou alquímica.

Na cosmologia alquímica confluem noções de muitas correntes filosóficas: os quatro elementos pré-socráticos; a quintessência aristotélica; a correlação e influência astral sobre o sublunar, ou que tudo emana de um Uno, do neoplatonismo; a teoria corpuscular; o pneuma e o princípio seminal de cada coisa do estoicismo; a cabala, etc., o que demonstra a natureza sincrética do fenómeno.

Existem diversos tipos de alquimia: crisopeia ou transmutação em ouro, spagyria ou criação de destilados e outras substâncias de inspiração paracélsica, a iatroquímica ou aplicação em medicina. Foi dividida em fases, sendo as sequências mais habituais 3 (nigredo, albedo, rubedo), 7 ou 12. Além disso, utiliza dois processos, solve et coagula, dissolver e coagular ou reunir; também apresenta duas vias básicas para desencadear os processos, a via do fogo e a via da água, e os processos também foram ordenados pouco a pouco numa obra menor e outra maior.

A prática afigurou-se muito útil em termos históricos, aplicando-se a técnicas e a campos muito diversos, mais além da crisopeia ou transmutação dos metais em outro, como a preparação de corantes e pigmentos, a criação de armamento, a metalurgia, as pedras preciosas, as práticas vinculadas à medicina e a fármacos, o refinamento de sais, os avanços em fórmulas químicas, o tratamento de vidro e cerâmica…

 

História (da Antiguidade ao período clássico)

Resumindo muito, a história da alquimia pode dividir-se em, pelo menos, dois grandes períodos: o primeiro, até ao séc. xvii, e o segundo, posteriormente. No primeiro, a prática estava vinculada estreitamente à ciência, à investigação química, por exemplo, com destilados herbais, investigação de laboratório, mas dela se extraíam também consequências analógicas religiosas, sem desligar os dois aspetos.

A partir de então, o horizonte cultural alquímico enfatiza a linguagem simbólica de leitura espiritual, em muitos autores, separada da investigação com substâncias no laboratório. Essa segunda versão metafórica vê-se acentuada, contudo, ainda mais, desde o ocultismo do séc. xix, muito influente, também, na arte, com as suas referências simbólicas num conjunto vasto de obras, por exemplo, no simbolismo e no surrealismo.

As suas origens apresentam-se incertas. É certo que existem evidências de que experimentou um grande desenvolvimento na cultura alexandrina, com autores míticos como Hermes Trismegisto e Maria, a Judia, mas o primeiro de que se têm dados concretos fidedignos, Zósimo de Panópolis, remonta a cerca de 300 d.C. Muitos destes textos sobreviveram graças às traduções no mundo árabe, onde a ciência de Hermes floresceu.

Além dos clássicos alexandrinos, destacaram-se como autores e obras mais célebres na alquimia produzida nos países muçulmanos Geber (séc. viii), o texto Turba Philosophorum (c. 900), Senior Zadith (séc. x), o Liber Secretorum e a Tabula Smaradigna, segundo Kingsley (2000), o texto mais importante da alquimia no Ocidente. Como em tantos outros aspetos do conhecimento medieval, as cortes ibéricas foram a chave para uma tradução de todas essas fontes alexandrinas e árabes, a partir do séc. xii. Graças a elas, projetariam uma grande influência no renascimento alquímico no Ocidente. Muita da investigação realizada em países cristãos beneficiou das referidas traduções. Alguns dos alquimistas medievais mais célebres da chamada cadeia dourada de praticantes foram o Pseudo-Geber, em latim (séc. xiii), e Roger Bacon (séc. xiii). A alquimia medieval dividia a substância em dois princípios, enxofre e mercúrio. Para a teoria das correspondências e o pensamento simbólico, o enxofre era o sol, fogo, masculino, o mercúrio a lua, água, feminino.

Os processos no atanor passaram a ser metaforizados de maneira cristã. Autores medievais como Petrus Bonus ou o Pseudo-Arnau de Vilanova enfatizaram as analogias entre a Pedra e Cristo, assim como a morte e ressurreição do metal para transmutar na Pedra equivalem à Paixão, morte e ressurreição da pessoa em Cristo.

Ao tempo em que muitos reis impulsionaram a investigação, sucederam-se igualmente as proibições por parte do Papa (1317), em França (1380) ou em Inglaterra (1452), não contra a digressão teosófica, mas sim contra a crisopeia e o afã de lucro de alguns alquimistas, havendo casos de praticantes obsessivos ou de simples burladores.

Embora, em termos gerais, o humanismo do séc. xv a tenha desprezado, dando seguimento a críticas que já vinham de autores medievais, numa larga polémica, o círculo hermético-neoplatónico que se desenvolveu a partir de Marsílio Ficino valorizou-a, com efeito, enquanto capaz de sintetizar a quintessência da vida e o espírito essencial de cada coisa.

Ainda que com antecedentes, como o Liber Secretorum Alchimiae (1257), foi a partir dos inícios do séc. xv que se produziu um incremento em número de manuscritos com ilustrações e que se tornaram populares; também aumentaram as obras em línguas vernáculas, juntamente com o latim. Com os anos, foram-se publicando mais livros impressos, com gravuras que os ilustravam, o que contribuiu para um novo nível de densidade na difusão do conhecimento, graças a essas imagens de sentido velado e gosto pelo mistério. Toda essa publicação eclodiu durante o séc. xvi e princípios do séc. xvii, a idade de ouro dos livros com gravuras, com obras como Donum Dei (1.ª ed., c. 1400), Splendor Solis (c. 1450), Aurora Consurgens (séc. xv), Rosarium Philosophorum (1550), El Libro de Lambspring (1599), e de alquimistas com um profundo amor pela teologia, a teosofia, o hermetismo e o misticismo cristão, como Heinrich Khunrath, Michael Maier, J. D. Mylius e Robert Fludd.

Em finais do séc. xvi, ganhou força o pansofismo utópico vinculado à alquimia, que unia o misticismo cristão com o hermetismo, o neoplatonismo e a cabala, de grande impacto para a alquimia mais teosófica, cujo movimento mais importante foi o rosacruzianismo. O volume de obras era tão grande que apareceram muitas recompilações, como o Theatrum Chemicum, que reúne textos em seis volumes (c. 1650).

Outra figura capital que contribuiu para o valor social e cultural que adquiriu a alquimia foi Paracelso. Depois da vinculação da prática à cosmologia e à filosofia hermético-neoplatónica, Paracelso utilizou-a na sua medicina e farmacopeia de princípios homeopáticos, baseados na teoria de que o corpo humano constitui um microcosmos do macrocosmos universal, no que denominou iatroquímica. Outra das suas inovações consistiu em ter incorporado um terceiro elemento básico na essência de qualquer coisa: aos dois da alquimia clássica – enxofre e mercúrio – acrescentou o sal, resíduo incombustível. Todas as substâncias partiam destas três, que não devem ser confundidas com os seus equivalentes químicos.

 

História (divisão da prática a partir de finais do séc. xvii)

A partir de finais do séc. xvii, a química desligou-se da alquimia, a prática de laboratório da reflexão metafísica, sendo separadas em duas linhas de investigação. Até essa época, encontram-se grandes químicos, como Robert Boyle, George Starkey – autor de alguns dos mais célebres tratados de alquimia, sob o pseudónimo de Eirenaeus Philalethes – ou o próprio Isaac Newton.

Até finais do séc. xvii, os manuais e estudos sobre alquimia não distinguiam estritamente entre ela e a química, nem se negava a possível transmutação dos metais. Mas Nicolas Lémery evitou abordar a alquimia na 3.ª edição do seu Curso de Química (1679), o que animou outras autoridades das academias científicas a atacar a prática ou eliminá-la dos planos de estudo. A distinção alquimia-química, no séc. xviii, explica-se pelo intento de institucionalização e profissionalização da química, o que levou a que se procurasse distinguir esta última de uma prática que surgia como controvertida. Outro fator que impulsionou este processo prendeu-se com o facto de os grandes químicos comprovarem, em laboratórios cada vez melhor equipados, que as afirmações da ciência de Hermes não conduziam ao fim desejado.

Por outro lado, foi-se formando o que se denominou de alquimia espiritual, dissociada da química. Este tipo de alquimia, mais do que traçar analogias entre processos materiais e espirituais, após pesquisa laboratorial, apresenta analogias entre as metáforas alquímicas e os processos espirituais, seguindo os escritos místico-alquímicos de Jacob Boehme ou as gravuras dos livros de alquimia. O místico Jacob Boehme sobressaiu ao empregar a alquimia, fora do âmbito do laboratório, como provedora de metáforas para a sua teosofia, que animava a um renascimento espiritual. Não obstante, as metáforas derivadas da alquimia transmutacional de laboratório explicam, em Boehme, processos que se produzem na alma, mas também no corpo, num processo de transfiguração.

Também durante o séc. xvii, correntes esotéricas como a Maçonaria e os
Rosacruzes, ou, já no séc. xix, Mary Ann Atwood, empregaram uma alquimia espiritual. Esta alquimia, em boa medida – embora não exclusivamente, como se viu com Boehme –, ocupa-se da parte mais metafórica, vinculada a ideias cosmológicas, espirituais e teológicas, na sua vertente mais espiritual. A transmutação do metal grosseiro em ouro converte-se numa metáfora sobre a transmutação do eu egoico em alienação com o espírito.

Se os racionalistas do séc. xviii a separaram da química, certo é que a alquimia ainda foi mais atacada por ilustrados e positivistas, que a rejeitaram como fraudulenta. Dentro deste marco institucional já não tinha cabimento o segredo, a clareza de exposição era o novo ideal científico, que além disso tinha implicações no trabalho de professor universitário, de escritor, de boticário, de instrutor privado. Acentuou-se a progressiva separação do que previamente tinha sido uno: a investigação em laboratório, que dava lugar a uma teosofia, graças às analogias espirituais.

O séc. xx e o mundo contemporâneo deram continuidade à recuperação da “ciência de Hermes” por linhas de investigação muito diferentes: a espiritualista erudita, de Fulcanelli, a correção do ataque ilustrado efetuada pelos historiadores da ciência da Nova Historiografia, como base de uma nova especulação dentro dos novos movimentos religiosos New Age, a sua influência no incremento da simbologia da arte e o seu estudo por historiadores da arte, como Raimon Arola.

 

Metodologias de análise no séc. xx

A historiografia sobre a alquimia no séc. xx pode dividir-se em duas grandes escolas de interpretação. No séc. xx, mais ou menos desde os anos 40, até aos 90, é dominante o tipo de interpretação do psicanalista C. G. Jung. Jung contribuiu para a recuperação do interesse e estima da prática como objeto de análise científica, com uma interpretação em que primavam as analogias entre a psicologia e o estudado na alquimia. Esta proporcionou-lhe, por exemplo, um material com o qual podia descrever o processo de individuação nas suas facetas principais, discriminadas nas fases de amadurecimento até à Pedra filosofal. Trata-se de um tipo de interpretação muito influente em estudos sobre a imagem nos livros de gravuras.

O segundo tipo de interpretação de grande envergadura diz respeito à Nova Historiografia, liderada por William Newman e Lawrence M. Principe, que tornou a recuperar o interesse e a estima no campo científico, partindo da investigação da história da ciência e distinguindo claramente a ciência alquímica do tipo de alquimia de recorte espiritualista que se desenvolve a partir do séc. xvii, desligada da ciência. Esta corrente interpretativa rompeu com os preconceitos positivistas, por exemplo, provou como diversos químicos do séc. xvii foram, ao mesmo tempo, alguns dos alquimistas principais do mesmo período; a Nova Historiografia tem um enfoque historiográfico e empírico, interessado no fenómeno enquanto movimento histórico, e quanto mais forem as fontes primárias sondadas, melhor.

O mesmo interesse pelas fontes primárias mostra a escola historicista do grupo History of Hermetic Philosophy, com Wouter Hanegraaff, Marco Pasi e Peter Forshaw, que propõem um enfoque igualmente histórico, mas que enfatizam a indagação em torno da parte teológica e cosmológica, dado que o seu foco e metodologia provêm dos estudos religiosos. Tanto a Nova Historiografia como o grupo de investigação em hermetismo e assuntos relacionados quebraram com o preconceito racionalista e, logo, positivista que menosprezava a Grande Obra como simples protoquímica, imaginativa em excesso, no melhor dos casos, quando não, diretamente, uma fraude.

 

Bibliog.: Arola, Raimon, Alquimia y Religión. Los Símbolos Herméticos del Siglo XVII, Madrid, Siruela, 2008; Ferrer-Ventosa, Roger, “Pensando en imágenes jeroglíficas”, Arte, Individuo y Sociedad, vol. 30, n.º 2, 2018, pp. 311-328; Forshaw, Peter J., “Introduction: The Visual and the Symbolic in Western Esotericism”, in Forshaw, P. (ed.), Lux in Tenebris. The Visual and the Symbolic in Western Esotericism, Leiden/Boston, Brill, 2017, pp. 1-20; Godwin, Joscelyn, “Introducción”, in Maier, Michael, La Fuga de Atalanta, Atalanta, Vilaür, 2007, pp. 9-59; Hanegraaff, Wouter, “From Imagination to Reality: An Introduction to Esotericism and the Occult”, in Almquist, Kurt y Belfrage, Louise (ed.), Hilma Af Klint: The Art of Seeing the Invisible, Stockholm, Axel and Margaret Ax:son Johnson Foundation, 2015, pp. 59-71; Jung, Carl Gustav, Mysterium Coniunctionis. Obra Completa, vol. 14, Madrid, Trotta, 2002; Kingsley, Peter, “Poimandres: The Etymology of the Name and the Origins of the Hermetica”, in Broek, Roelof van den y Heertum, Cis van (ed.), From Poimandres to Jacob Böhme: Gnosis, Hermetism and the Christian Tradition, Amsterdam, Bibliotheca Philosophica Hermetica, 2000, pp. 17-40; Newman, William R., “From Alchemy to ‘Chymistry’”, in Park, Katharine & Daston, Lorraine, The Cambridge History of Science, vol. 3: Early Modern Science, Cambridge, Cambridge University Press, 2006, pp. 497-517; Id. e Principe, Lawrence M., Alchemy Tried in the Fire. Starkey, Boyle, and the Fate of Helmontian Chymistry, Chicago, Chicago University Press, 2002; Zuber, Mike A., Spiritual Alchemy. From Jacob Boehme to Mary Ann Atwood, Oxford, Oxford University Press, 2021.

 

Roger Ferrer Ventosa

 

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