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Biodiversidade

“Biodiversidade” é um termo que surgiu na déc. de 1980 para designar a riqueza de espécies biológicas ou a diversidade biológica do planeta e que contribuiu para fortalecer o ativismo ambiental para a conservação, tendo motivado na década seguinte um acordo internacional, denominado Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Aprovada em 1992 durante a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, esta convenção teve por objetivo assegurar o uso sustentável e o acesso equitativo à biodiversidade. Ao afirmar a existência da grande biodiversidade no planeta, a CDB constatou a sua perda significativa e contínua ao longo dos séculos, incluindo espécies desconhecidas, o que resultou na urgência de um levantamento exaustivo para catalogação científica da biodiversidade. Foram identificadas numerosas espécies ameaçadas de extinção, o que gerou várias ações bem-sucedidas de recuperação.

A perda significativa da biodiversidade resulta da histórica devastação promovida pela humanidade na busca de lucros incessantes, à custa do esgotamento dos recursos naturais. A Revolução Industrial desencadeou um processo sem precedentes de aceleração dos desequilíbrios ambientais, cuja intensidade e abrangência foi de tal amplitude que deu origem a uma nova era geológica, denominada Antropoceno (cf. MOORE, 2016), devido à presença deletéria dos seres humanos em todos os rincões do planeta, com graves repercussões sobre o clima da Terra, das quais se destacam os contínuos desmatamentos das florestas, a extração descontrolada de recursos animais, vegetais e minerais e o aumento exponencial dos resíduos das atividades humanas, acumulados em toda a parte, incluindo os oceanos, onde os resíduos plásticos se misturam com as algas e com outras espécies de aparência similar, provocando mortes e perdas expressivas da biodiversidade marinha e terrestre.

Parte significativa da biodiversidade não catalogada pela ciência integra o repertório de saberes de populações tradicionais, que partilham o mesmo habitat dessas espécies (cf. ELOY et al., 2014). A importância da troca e diálogo de saberes entre cientistas e especialistas locais para o avanço do conhecimento da biodiversidade tem resultado em políticas direcionadas para o fomento de ações de conservação. Contudo, há uma assimetria que se pode constatar neste diálogo, podendo levar a ganhos infinitamente desiguais. Vandana Shiva (2003), filósofa e ativista indiana, confrontou-se com a CDB, alegando uma grave omissão desta convenção quanto à questão do reconhecimento dos direitos intelectuais das populações tradicionais, cujo conhecimento é tratado como património coletivo, devendo ser acessível aos investigadores, para o bem da humanidade. No entanto, o conhecimento tradicional associado ao conhecimento genético de espécies tem sido alvo do interesse de investigações para bioprospeção (cf. CUNHA, 2017) que geraram muitas patentes de espécies para produção de fármacos, produtos alimentícios e outros usos industriais, com enriquecimento da grande indústria, em detrimento dessas populações. Vários processos jurídicos contra empresas pelo crime de biopirataria foram movidos por estas populações, especialmente na Índia, muitos deles com êxito.

As regiões megadiversas do planeta coincidem com as áreas com maior diversidade cultural e linguística, onde vivem populações indígenas/tradicionais que reivindicam os seus direitos sobre o conhecimento da biodiversidade (cf. TOLEDO e BARRERA-BASSOLS, 2008). As legislações existentes foram motivadas pelo interesse utilitário e económico da biodiversidade, em detrimento do valor simbólico e não utilitário que elas representam para populações indígenas/tradicionais. Assim, a biodiversidade, além de pertencer ao património cognitivo das populações tradicionais, integra igualmente o património simbólico ligado às cosmologias indígenas. Deste modo, a extinção das espécies reflete-se em perdas cognitivas e linguísticas, afetando e empobrecendo outras visões do mundo. A relação entre essas áreas megadiversas e as populações indígenas/tradicionais que as ocupam demonstra não só a dependência dessas populações relativamente aos ecossistemas, como também o seu uso sustentável, de modo a assegurarem a manutenção das suas práticas simbólicas. Neste sentido, a biodiversidade está ligada à espiritualidade e insere-se nas cosmologias indígenas, nas quais as espécies são vistas sob uma perspectiva espiritual.

Na cosmologia amazónica, e.g., Viveiros de Castro (2002a) identificou a conceção indígena, presente no xamanismo, da indistinção entre humanos e animais, em que opera uma comunicação interespécies no plano ritual, na qual o animal é o outro. A caça tem um lugar primordial nas cosmologias indígenas, sobrepondo-se à questão da dependência ecológica, já que a relação entre presa e predador é concebida sob uma ótica espiritual, sendo uma atividade reivindicada como necessária para a manutenção da cosmologia amazónica. Sibupá Xavante, um xamã guarani do Brasil, num depoimento sobre um sonho que teve, traduziu o significado da caça como sendo um estímulo à atividade do sonho, afirmando que a sua extinção constitui uma interferência na espiritualidade, uma vez que sem a caça o índio não consegue sonhar e, consequentemente, conectar-se com o mundo espiritual. Segundo este xamã, “Eu tive um sonho. O Criador do Mundo apareceu e me disse que os animais estão desaparecendo, morrendo ou fugindo. Nós precisamos arrumar um jeito de aumentar os animais e proteger o lugar onde eles vivem. Porque, se o povo indígena deixar de comer carne de caça, vai deixar de sonhar. E são os sonhos de poder que mostram o caminho que devemos seguir” (JECUPÉ, 1998).

A conceção indígena da unidade do mundo espiritual levou Viveiros de Castro a propor o multinaturalismo (CASTRO, 2002b) como forma de expressar a visão indígena de múltiplas naturezas, que inverte a conceção ocidental universal da natureza, e da diversidade da cultura pelo seu reverso. No xamanismo amazónico, esta visão manifesta-se através do sacrifício (cf. Id., 2002c), no qual o xamã é ao mesmo tempo sacrificador e vítima, cuja finalidade é experimentar a conexão entre humanos e não-humanos. Os xamãs têm a faculdade de ver os espíritos nesta dupla condição de humanos e animais, sendo que apenas eles podem comunicar com estes seres espirituais, uma vez que durante o ritual vivenciam uma metamorfose em que não são nem animais nem humanos. A comunicação interespécies é vetada aos outros humanos, já que uma eventual interlocução leva à morte. As máscaras e adereços animais usados pelos xamãs nos rituais não constituem fantasias para esconder a sua condição humana, mas antes instrumentos que os habilitam à comunicação interespécies.

Para Bataille (1993), a animalidade possui a imanência como uma condição inerente ao seu meio pela ausência de consciência. Contudo, no sacrifício, o sacrificante, ao ficar fora da ordem do mundo humano, comunica com outra ordem e participa da imanência da vítima animal ou vegetal. O sacrifício visa a participação do sacrificante com a intermediação do animal e do seu sangue, para uma conexão com o mundo espiritual, daí o papel crucial dos sacrifícios animais para a cosmologia africana dos cultos afro-brasileiros. No entanto, o interesse pela biodiversidade manifesta-se igualmente em teologias cristãs a partir do tema da Criação e do cuidado. Teólogos de igrejas evangélicas têm-se empenhado na construção de uma exegese bíblica para uma leitura ecoteológica, especialmente do texto do Génesis, devido à atribuição da responsabilidade da religião judaico-cristã pela crise ambiental.

A encíclica Laudato Si, do Papa Francisco (2015), inspirada no amor de S. Francisco por todas as criaturas, reconhece a urgência de sensibilizar a humanidade para o cuidado com o planeta, “a nossa casa comum”. Esta encíclica fundamenta-se ainda na ecologia integral, que parte da noção de bem comum para anunciar a responsabilidade humana com a criação, com base nos princípios do cuidado, da cooperação e da reciprocidade, e clama pela conversão ecológica da humanidade. Embora o texto revele o empenho da instituição católica com a proteção da biodiversidade, nele persiste a visão utilitária das espécies para o usufruto da humanidade no presente e no futuro, como atesta o seguinte trecho: “A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação, mas também para a cura de doenças e vários serviços” (FRANCISCO, 2015, 3, 32), ainda que noutro trecho transpareça a espiritualidade franciscana de amor à Criação como um valor em si mesmo e sobretudo aos olhos de Deus: “Por nossa causa, milhares de espécies já não darão glória a Deus com a sua existência, nem poderão comunicar-nos a sua própria mensagem” (Id., Ibid., 3, 33). Como continuidade da ecologia integral, o Papa Francisco convocou o Sínodo para a Amazónia em 2019, cuja ênfase foi o reconhecimento dos saberes dos povos indígenas pan-amazónicos acerca da biodiversidade da floresta amazónica, ambos ameaçados pelos interesses económicos sobre os seus territórios.

 

Bibliog.: impressa: BATAILLE, George, Teoria da Religião, São Paulo, Editora Ática, 1993; CASTRO, Eduardo Viveiros de, A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2002a; Id., “Perspectivismo e multinaturalismo na América indígena”, in A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2002b, pp. 345-399; Id., “Xamanismo e sacrifício” in A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de Antropologia, São Paulo, Cosac & Naify, 2002c, pp. 457-472; CUNHA, Manuela Carneiro da, “‘Cultura’ e cultura: Conhecimentos tradicionais e direitos intelectuais”, in Cultura com Aspas e Outros Ensaios, São Paulo, UBU Editora, 2017, pp. 304-369; JECUPÉ, Kaka Werá, A Terra dos Mil Povos: História Indígena do Brasil Contada por Um Índio, São Paulo, Peirópolis, 1998; MOORE, Jason W., Anthropocene or Capitalocene? Nature, History, and the Crisis of Capitalism, Oakland, PM Press/Kairos Book, 2016; SHIVA, Vandana, Monoculturas da Mente: Perspectivas da Biodiversidade e da Biotecnologia, São Paulo, Gaia Editora, 2003; TOLEDO, Victor e BARRERA-BASSOLS, Narciso, La Memoria Biocultural: La Importancia Ecológica de las Sabidurias Tradicionales, Barcelona, Icaria Editorial, 2008; digital: ASSEMBLEIA ESPECIAL DO SÍNODO DOS BISPOS PARA A REGIÃO PAN-AMAZÔNICA, Amazônia: Novos Caminhos para a Igreja e para Uma Ecologia Integral (Amazónia, 6-27 de outubro de 2019): http://secretariat.synod.va/content/sinodoamazonico/pt.html (acedido a 21-03-2022); ELOY, Christinne Costa et al., “Apropriação e proteção dos conhecimentos tradicionais no Brasil: A conservação da biodiversidade e os direitos das populações tradicionais”, Gaia Scientia, n.º especial Populações Tradicionais, 2014, pp. 189-198: https://periodicos.ufpb.br/index.php/gaia/article/view/22587/12537 (acedido a 21-03-2022); FRANCISCO, Papa, Carta Encíclica Laudato Si’ do Santo Padre Francisco sobre o Cuidado da Casa Comum, Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 2015: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html (acedido a 21-03-2022); ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Convenção sobre a Diversidade Biológica, Rio de Janeiro, Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, 1992: https://www.gov.br/mma/pt-br/textoconvenoportugus.pdf (acedido a 21-03-2022).

 

Maristela Oliveira de Andrade

 

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