Para a cultura ocidental atual, autoconfiante na ciência e deslumbrada pela técnica, Deus saiu fora da equação da existência. Deus? Ou não existe, ou é irrelevante. Não se comunica com um Deus inexistente. Embora não faltem ateus, hoje, mais que negar-se intencionalmente Deus, simplesmente vive-se como se Deus não existisse. O respeito que ainda há pela religião funda-se não no seu valor intrínseco, mas no respeito pelas opções livres do indivíduo: a religião deve ser respeitada se for parte genuína da construção do próprio eu. Também pode ser respeitada pelo valor etnográfico ou histórico das suas tradições e simbologias. Em qualquer caso, nem Deus é parte da realidade experimentada por todos, nem o conhecimento sobre Deus pode ser partilhável, pois a relação com Deus só pode ser subjetiva e interior. Também se estende à desistência de ter convicções sobre Deus. Parecendo modéstia intelectual, tem dentro de si a convicção de que o Homem não consegue chegar ao coração da realidade e priva a vida do principal critério de orientação.
Tais tendências de negação ou omissão de Deus, maturadas nos últimos três séculos, são exceção na multimilenar experiência humana. As angústias pela sobrevivência e subsistência, o desejo de acalmar as forças da natureza, a cura das doenças, a normalização de relacionamentos familiares e sociais, a falta de forças para a guerra, a inquietante incerteza sobre o futuro e a morte, sempre impeliram os homens e as culturas para a busca de poderes maiores e benfazejos. Também o espanto perante a natureza, a imensidão cósmica e a filigrana dos seres minúsculos convence o Homem, se não viver mergulhado na técnica, do seu lugar: nem se autocriou nem criou a realidade que contempla. E assim se abre ao poder grande que tenha realizado tais coisas. É a busca religiosa da divindade, com tantas expressões históricas quanto ao conceito, acesso e exigências. Não obstante variarem muito, desde a afirmação de uma divindade única até ao recurso a poderes intermédios, aproximam-se na ideia de que a divindade, podendo interferir neste mundo, está sobretudo numa posição passiva e recetora em relação às tentativas do Homem.
Os homens seguem ritos que os coloquem sob o favor dos poderes grandes, ritos que podem incluir intensas experiências sensoriais e alterações de consciência. Muitos ritos são eficazes e dão, ainda que fugazmente, uma desejada superação da insuficiência e limites da vida rotineira. O carácter genuíno desses fenómenos é a força poderosa que sempre lhes abrirá espaço e atualidade. Os poderes invocados são, mais que seres concretos, entidades difusas ou vagas, ainda que tenham nome. Havendo narrativas mitológicas e simbólicas sobre o mundo e a História, tais narrativas não têm pretensão histórica. A questão da verdade não é a principal. A maior ambição é a superação das dualidades, fragmentações e fricções da vida, de modo imergir totalmente no ser em que o eu finalmente se dissolva sem deixar rasto.
A grande disrupção em relação a essa multiforme busca religiosa da divindade dá-se com a inesperada iniciativa de Deus se comunicar com os homens. Deus sai em busca dos homens e diz, gradualmente, quem é Deus, quem é o Homem, que é o mundo, suas origens e futuro. A primeira abordagem foi a Abraão, e continuou com a sua descendência, formando um povo através do qual essa comunicação chegaria a todas as pessoas, numa continuidade de que o cristianismo se sente continuador. Deus disse de si que é Deus único e que não há outros deuses, não é só força omnipotente, mas é alguém que ama o mundo que criou, e ama muito especialmente o Homem e cada homem. Espera, em correspondência, que cada homem o ame com total coração, mente e forças. É sensível à situação concreta dos homens e altera os seus planos em função disso. Neste novo ambiente religioso, os factos históricos importam, e muito, porque Deus fala, por si ou por enviados, em momentos e lugares concretos. Cada homem pode e deve falar com Deus, e pode ter experiências muito elevadas de união mística sem menoscabo da prioridade das palavras de Deus ao povo que formou. Estes traços retratam o húmus comum do judaísmo e do cristianismo.
Saído do judaísmo, e numa trajetória que o judaísmo não aceita, o cristianismo traz, porém, um desenvolvimento inesperado: esse Deus toma forma humana num judeu de uma família da Nazaré de nome Jesus. Ele disse de si mesmo que era Deus e mostrou que em Deus há uma comunicação íntima de três pessoas divinas. Ao fazer-se homem, Deus amplia imenso a comunicação de si mesmo. Já não mais se pode dizer que de Deus se sabe nada ou muito pouco. Por outro lado, que Deus viva neste mundo e seja homem sem deixar de ser Deus traz enormes consequências para o olhar sobre o mundo e sobre cada homem. Para saber como comunicar com Deus, o Homem já pode aprender desse outro homem que é Deus. Pode ambicionar viver em constante união com Deus tal como o homem-Deus Jesus. Neste contexto, a ambição religiosa mais profunda é a relação plena com Deus numa comunhão de amor que não aniquila o eu, antes lhe dá a plena realização no seu ser autónomo. A existência após a morte será uma coexistência com Deus e com quem decidiu viver com Deus, não apenas como aproximação entre espíritos, mas numa convivência também corporal, embora num novo estado da matéria.
Também o islão se situa na atitude religiosa disruptiva que resulta de uma revelação de Deus, e não na procura do homem. Também o islão vê Deus a falar aos homens, que, em resposta, a ele se submetem, como Abraão se submeteu a Deus. Para o islão, a comunicação de Deus aos homens fez-se de modo perfeito e completo ao profeta Maomé e ficou registada por mão divina no Corão, de tal maneira que nenhuma das palavras tem autoria humana. Deus é totalmente transcendente, e não é próprio atribuir a Deus atitudes próprias do Homem, nem por analogia. Também por isso a comunicação deve expressar a dissimilitude de posições entre criador e criatura, não havendo lugar a um teor familiar na relação.
Bibliog.: BENTO XVI, Carta Encíclica Deus Caritas Est, Braga, Apostolado da Oração, 2006; PINTO, Paulo Mendes (coord. cient.), Religiões: História, Textos, Tradições, Lisboa, RELIGARE/Paulinas Editores, 2006; POUPARD, Paul (dir.), Dictionnaire des Religions, 2 vols., Paris, Puf, 2007; RATZINGER, Joseph, Fé, Verdade, Tolerância. O Cristianismo e as Grandes Religiões, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2006.
Pedro Gil