Em sentido positivo ou indiferente, “concupiscência” significa desejo intenso de uma realidade agradável, sensitiva ou espiritual, com raiz nos instintos de conservação, reprodução ou afirmação pessoal. É realidade natural da pessoa como ser infinitamente aberto do ponto de vista do desejo: sendo finita, deseja o infinito. É independente da vontade e foge muitas vezes ao seu controlo. A Sagrada Escritura atesta este sentido tanto no substantivo epithymía, como no verbo epithyméo (“desejar”) (Mt 13, 17; Lc 15, 16; 22, 15; Fl 1, 23; 1Ts 2, 17; Hb 6, 11).
Em sentido mais restrito de carácter espiritual e moral, refere-se a desejo mau, má inclinação, que arrasta para o mal, como emanação e sinal de um coração perverso que se separou de Deus, tendo, inclusive, sido apelidada de “isca” ou “aguilhão” do pecado (fomes peccati). Assim surge nos evangelhos (Mt 5, 28; Mc 4, 19), sobretudo nas cartas paulinas. Nestas, é simbolizada na “carne” (sarx), como natureza pecadora e afastada de Deus, expressão do pecado que domina sobre a pessoa (Gl 5, 17). Tal desejo afeta-a no centro da sua própria personalidade (Rm 1, 24), que acaba por ficar sob o controlo das forças do mal (Ef 2, 3; Tt 3, 3). Os desejos desordenados incidem em todos os âmbitos da vida: os gozos materiais, o prazer sexual, a posse de bens, etc. (Gl 5, 16-21; 1Tm 6, 9). A luta contra a concupiscência está na vida inspirada por Deus (Rm 6, 12-13; Gl 5, 24; Ef 4, 22-24; Tt 2, 12-14).
A teologia joanina fala de concupiscência presente na pessoa, nos sentidos e na ambição dos bens terrenos: “tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não vem do Pai, mas sim do mundo (1Jo 2, 16), isto é, de forças hostis a Deus. Noutros escritos, surge como potência que cativa e atrai para submeter ao seu poder (1Pd 2, 11; 2Pd 2, 10.18-20; Tg 1, 14-15).
O Catecismo da Igreja Católica trata o tema da concupiscência no âmbito do “nono mandamento” do decálogo, que se estende a todo o desejo imoderado (Ex 20, 17). Depois, retomando os pontos essenciais da tradição, explica: “em sentido etimológico, ‘concupiscência’ pode designar todas as formas veementes de desejo humano. A teologia cristã deu-lhe o sentido particular de impulso do apetite sensível, contrário aos ditames da razão humana” (n. 2515). Este sentido negativo deve-se também às filosofias platónica e estoica, esta última acentuando o ascetismo, a recusa do prazer e a ausência de paixões.
O impacto no cristianismo, sobretudo na espiritualidade e na ética, foi e continua a ser grande. Destacam-se os traços seguintes: na pessoa, há quatro paixões (pathé) que são fonte de perturbação da alma, porque contrárias à razão (logos), exercendo nela uma ação contínua e latente. Trata-se do prazer (hedoné), da dor ou da pena (lúpe), do desejo (epithymía) e do medo (phóbos), consideradas doenças da alma. Na medida em que perturbam a razão, devem ser dominadas e até suprimidas, uma vez que não permitem alcançar a felicidade, pelo que o remédio está no domínio de si. A perfeição espiritual e moral está na ausência de paixões, a apatheia, que se alcança pela ascese. Esta é a virtude dos sábios e fortes que chegaram ao domínio de si mesmos. Consegue-se sobretudo pela imperturbabilidade (ataraxia), que consiste em não se deixar perturbar por nada e no domínio dos sentimentos pela razão. O lema é “aguenta e renuncia” (sustine et abstine). O ideal é chegar ao controlo da ratio sobre o agir.
A concupiscência teve e continua a ter referência privilegiada no âmbito do desejo sexual, na sequência da compreensão agostiniana do pecado original. Ou seja, a natureza humana, ferida pelo pecado, torna-se natureza decaída; nela está a concupiscência, de que a sexualidade é uma das expressões mais fortes, às vezes avassaladora. Repassados pela sua desordem e malícia, porque fora do controlo da razão, a sexualidade e o prazer que a acompanha são males, defeito ou enfermidade que algumas razões extrínsecas podem desculpar ou compensar, pois não se pode realizar o mal sem motivos de bem maior, as excusationes. A sua satisfação só se escusa no matrimónio como “remédio” (remedium concupiscentiæ ou remedium infirmitatis) para a realização do fim primário, a procriação (bonum prolis), ou quando os dois cônjuges, ou um deles, correm o perigo de cometer adultério e, assim, violar a fidelidade matrimonial (bonum fidei). Nesta situação, contudo, há que distinguir entre pedir para ter relações sexuais (petere debitum coniugale) e aceitá-las (reddere debitum comuigale). Em vista da procriação, não há pecado; pedir o débito conjugal é pecado venial, sinal de cedência à concupiscência; dar o débito conjugal não o é, porque está em causa o direito do outro cônjuge estabelecido no pacto matrimonial.
Este entendimento negativo e pessimista do desejo sexual, e respetivas consequências, foi doutrina “canonizada” no Código de Direito Canónico, de 1917: “o fim primário do matrimónio é a procriação e a educação da prole; o secundário é a ajuda mútua e o remédio da concupiscência” (cân. 1013, § 1). O Concílio Vaticano II afirma uma doutrina diferente com outra linguagem, considerando que as relações sexuais conjugais “significam e fomentam a doação mútua, com que ambos [os cônjuges], de ânimo grato e feliz, reciprocamente se enriquecem” (Gaudium et Spes, 49), e o Catecismo da Igreja Católica acrescenta: “a sexualidade é fonte de alegria e de prazer” (n.º 2362).
Há quem considere que a terminologia anterior pode ter sentido positivo, se for entendida como favorecedora da fidelidade conjugal e remédio para a tentação da infidelidade, não para a desordem do prazer.
Bibliog.: MEEKS, W., The Moral World of the First Christians, Philadelphia, Westminster Press, 1986; OORT, J. Von, “La concupiscencia sexual y el pecado original según San Agostín”, Augustinus, n.º 36, 1991, pp. 337-342; SCHEFFCZYK, L., “Concupiscenza”, Sacramentum Mundi, vol. ii, 1974, pp. 558-562; SCHÖNWEISS, H., “Desiderio, passioni”, in Dizionario dei Concetti Biblici del Nuovo Testamento, Bologna, Dehoniane, 1976, pp. 457-460; SPANNEUT, M., Le Stoïcisme des Pères de l’Église: De Clément de Rome à Clément d’Alexandrie, Paris, Seuil, 1957; WIESNER-HANKS, M., Cristianismo y Sexualidad en la Edad Moderna. La Regulación del Deseo, la Reforma de la Pratica, Madrid, Siglo XXI, 2001.
Jerónimo Trigo