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Confiança

Confiança conjuga-se com fé. Atesta-o tanto a sua raiz etimológica fides como a dinâmica antropológica mais elementar de reconhecer valor e de dar crédito a quem/a quanto se apresenta fiável, digno de confiança, e, consequentemente, de corresponder em liberdade pelo ato de se confiar. O que vale humanamente – seja uma experiência, outra pessoa, a existência ou o próprio Deus – tem a força de um apelo que ecoa afetivamente como digno de confiança. Só assim é capaz de suscitar, de implicar e de mover a liberdade ao acolhimento e à correspondência. O ser humano confia-se a quem/ao que se lhe apresenta digno de confiança. Responde ao que corresponde à expectativa íntima de bem que o constitui, implicando-se responsavelmente na resposta que der.

A revelação cristã inscreve-se no húmus antropológico da confiança. A história de Jesus de Nazaré, reconhecida pelos discípulos como história do Filho de Deus entre nós, atesta que o desejo humano de uma vida boa e feliz coincide com o sonho criador de Deus. As palavras e os gestos de Jesus confirmam e realizam a bondade das origens, desmascarando todas as suspeitas afetivas de que Deus, no fundo, não seja confiável e de que a existência e os outros, na realidade, não sejam bênção, mas, antes, imposição insuportável e custo indevido. Pelo contrário, Deus é Abbá, Pai. A cruz confirma radicalmente o evangelho da dedicação incondicional de Deus:  destrói as suspeitas que distorcem o rosto divino e levam a duvidar da Sua verdade; destrói os ídolos que confundem a presença de Deus com o domínio e a arbitrariedade, pondo em causa a Sua justiça. A caro preço, Jesus de Nazaré atesta que Deus não quer ser suportado, mas reconhecido, acolhido e correspondido livremente, enquanto é reconhecido como dádiva gratuita de Si mesmo, bem desejável e necessária à vida que se deseja. Por isso, é digno de confiança.

O reconhecimento e a adesão na fé à revelação de Deus em Jesus apelam à ressonância afetiva, à ponderação crítica e à correspondência livre que qualificam a humanidade do ser humano e as suas relações. A disposição e o exercício da confiança ligam intimamente fé e vida. A forma como se gera a fé não é de outra natureza da que gera a vida: ambas são essencialmente questão de confiança, sendo que esta coloca a existência e as relações essencialmente no ambiente do dom gratuito e da firmeza de ânimo, da empatia e da correspondência livre, da alegria e da esperança. A confiança existencial elementar é o terreno comum à antropologia, à revelação e à fé cristã. Não espanta que, segundo os relatos evangélicos, Jesus inscreva a fé na “fisionomia” do lugar existencial elementar da confiança e identifique como “patologia” tudo o que tende a pô-la em causa. O dom da salvação oferecido por Jesus não se dá à margem ou à revelia das muitas linhas que tecem o direito e o avesso da existência de quem quer que vá encontrando no caminho. Dá-se, sim, como encontro capaz de reconciliar cada pessoa consigo mesma, com as relações, com a origem e o destino da sua existência. Trata-se de uma passagem pascal da desconfiança na vida à coragem de viver, da existência compreendida como imposição insuportável à vida recebida como dom digno de ser vivido – o seu custo não é contraditório com a bênção que é –, da abertura à medida sem medida do amor de Deus a partir da medida própria de cada um. Portanto, a salvação em Jesus não é menos do que a restituição de cada homem/mulher àquela confiança elementar sem a qual o ser humano não vive e sem a qual a abertura a Deus pela fé não tem chão humano. “Vai, a tua fé te salvou” é a exortação que os evangelhos põem repetidas vezes na boca de Jesus. Trata-se dessa confiança existencial reconhecida por Jesus e refeita no encontro com ele, dessa disposição e desse dinamismo capazes de atravessar todas a passagens apertadas e perigosas da existência e de elevar todas as suas possibilidades. O dom teologal da fé em Jesus Cristo inscreve-se no húmus elementar da confiança existencial.

Atender ao universo linguístico comum à organização social, à económica, à financeira (“valor”, “valorizar”/”desvalorizar”, “crédito”, “confiança”/“desconfiança” dos consumidores/dos mercados…) seria suficiente para constatar como o fenómeno humano e as suas múltiplas relações se alicerçam e sustentam na confiança/no crédito. Porém, percebemos também que não podem ser garantidos do ponto de vista legal, instrumental ou simplesmente organizativo. Na realidade, a confiança/o crédito são chão e cimento da vida humana, quer pessoal, quer social, quer económica, reenviando para uma origem/abundância mais do que necessária, à qual podemos chamar “graça”, que é sempre surpreendente, sempre comovente, sempre responsabilizadora.

A confiança assume modelação particular na experiência antropológica e espiritual da filiação. De uma experiência de reconhecimento se trata. Com o belo termo “reconnaissance”, a língua francesa colhe o nascimento como núcleo íntimo do reconhecimento. No lugar da confiança existencial, a fé teologal diz a graça de se reconhecer reconhecido, outro modo de falar de nascimento, de filiação e de fraternidade-sororidade. É graça de se reconhecer gerado por outro, fonte de gratidão e desejo de corresponder, de fortaleza e de esperança; é graça de poder gerar outros ao reconhecimento, fazendo-se dádiva livre de si para a vida de outros. É próprio do filho deixar-se surpreender e viver grato pelo dom recebido: a tentação é a da ingratidão e do lamento ressentido. Consequentemente, poder investir-se em liberdade no cultivo criativo da herança que recebeu: a tentação é a de se apropriar do dom, esquecendo-se de que é dádiva recebida ou, então, de não corresponder em liberdade e de não assumir responsabilidade pelo dom recebido. Viver agradecidos e investir-se em liberdade são as duas faces luminosas da mesma experiência filial que se alicerça e se realiza na confiança, as mesmas que vemos realizadas em Jesus Cristo, na sua relação com o Pai e na sua relação com os outros, inimigos incluídos. Ele é o Filho gerado-amado, o mais grato e o mais livre. Gerado, gera. Confiando, confia-se e oferece-se. Unigénito, faz-se Primogénito, o Filho único que se torna primeiro de muitos irmãos.

 

Bibliog.: ANGELINI, Giuseppe, Il Figlio: Una Benedizione, Un Compito, vol. 1, Milano, Vita e Pensiero, 1991; BACQ, Philippe e CHRISTOPH, Theobald, Uma Nova Oportunidade para o Evangelho: Para Uma Pastoral de Gestação, trad. Maria do Rosário Pernas, Prior Velho, Paulinas, 2013; CHRISTOPH, Theobald, Le Christianisme Comme Style. Une Manière de Faire Théologie en Postmodernité, Paris, Éditions du Cerf, 2007; Id., Et le Peuple Eut Soif. Lettre à Celles et Ceux Qui ne Sont pas Indifférents à l’Avenir de la Tradition Chrétienne, Paris, Bayard, 2021; CORREIA, José Frazão, Entre-Tanto: A Difícil Bênção da Vida e da Fé, Prior Velho, Paulinas, 2014; MANZI, Franco e PAGAZZI, Giovanni Cesare, Il Pastore dell’Essere: Fenomenologia dello Sguardo del Figlio, Assis, Citadella Editrice, 2001; NOBLE, Dominique e VILLER, Marcel, “Confiance”, in Dictionnaire de Spiritualité Ascétique et Mystique, t. ii, Paris, Beauchesne, 1937, pp. 1405-1412; PETROSINO, Silvano, Il Desiderio. Noi Siamo Figli delle Stelle, Milano, Vita e Pensiero, 2019; SEQUERI, Pierangelo, Il Dio Affidabile. Saggio di Teologia Fondamentale, Brescia, Queriniana, 1996; Id., Il Timore di Dio, Milano, Vita e Pensiero, 1996; Id., Sensibili allo Spirito. Umanesimo Religioso e Ordine degli Affetti, Milano, Glossa, 2001.

 

José Frazão Correia

 

Confiança (II)

É preciso confiar para viver. Com expressões como esta, torna-se evidente o quanto a confiança constitui uma atitude básica na existência do ser humano. Com efeito, sem confiança não poderíamos conviver, porque nas relações vitais com os outros não é possível comprovar constantemente as suposições e porque viver em suspeita permanente é insuportável. A confiança é, pois, uma vivência antropológica de primeira ordem: tomamos o medicamento que o médico nos manda tomar; consumimos os alimentos que se nos oferecem; formamos uma equipa de trabalho; compramos um produto; elegemos um governante; ou decidimos entrar numa relação afetiva. Ora bem, se, como afirma Schillebeeckx (1995), é certo que toda a experiência religiosa, espiritual ou mística se funda numa experiência humana, é pertinente que indaguemos não sobre um conceito de confiança, mas sobre o modo como pomos em prática a experiência de confiar.

Quando se confia em alguém tem-se uma determinada certeza de que o outro agirá conforme o que se espera dele numa dada situação. Esta certeza, contudo, não exclui de todo a incerteza, pois não há forma de garantir que a expectativa se cumprirá de modo fidedigno. Neste sentido, mais do que uma forma de segurança como a proveniente do cálculo de probabilidades baseado no conhecimento indutivo, o ato de confiar vive-se como uma “aposta de fé”; um acordo cujo resultado não admite verificação prévia, gera tranquilidade e vulnerabilidade em quem o concede, e reclama honestidade e responsabilidade em quem o recebe. A capacidade de confiar e a confiabilidade são, assim, sintomas de maturidade espiritual: a primeira ajuda-nos a aceitar a vulnerabilidade para alcançar paz; a segunda orienta-nos na busca da coerência entre palavras, emoções e ações. Como chegamos, então, a fazer esta aposta? A decisão de confiar em alguém não se toma às cegas, tendo antes como base a experiência própria sobre a confiabilidade do outro ou a palavra de alguém que dá testemunho dessa confiabilidade. No âmbito religioso, é habitualmente a confiança no testemunho o que conduz à confiança em Deus, pois graças a ele aprende-se que Deus é confiável. Graças ao testemunho bíblico, por exemplo, sabemos que Deus cumpre sempre a sua promessa (Js 21, 45) e, por isso, podemos pôr nele a nossa confiança. Espera-se que o crente possa, em algum momento, vivenciar diretamente a confiabilidade em Deus e, nesse caminho, se converta também em testemunha (Jo 4, 42).

 

Bibliog.: impressa: BRISEBOIS, Richard, “Sobre la confianza”, Cuadernos de Empresa y Humanismo, n.º 65, 1997, pp. 3-65; SANZ, Silvia et al., “Concepto, dimensiones y antecedentes de la confianza en los entornos virtuales”, Teoría y Praxis, n.º 6, 2009, pp. 31-56; SCHILLEBEECKX, Edward, Los Hombres Relato de Dios, Salamanca, Sígueme, 1995; digital: “Confianza”, Diccionario Enciclopédico de Biblia y Teología: https://www.biblia.work/diccionarios/confianza/.

 

Olvani Sánchez

 

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