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Dialética

Conceito-chave da história do pensamento ocidental, cuja evolução deu origem a uma das principais correntes metodológicas da filosofia europeia. O termo “dialética” provém do verbo grego διαλéγεσθαι, que significa, originalmente, “dialogar” ou “debater”. Com o desenvolvimento do pensamento filosófico, este verbo passou a designar também a prática de comparar teses contrárias ou contraditórias e extrair do seu confronto uma conclusão lógica.

A história da dialética inicia-se no período pré-socrático, com a rivalidade entre as escolas jónica e eleática. Enquanto Heraclito concebia a realidade como o resultado de um movimento perpétuo, alimentado pela luta incessante entre forças contrárias, Parménides e Zenão de Eleia – a quem Aristóteles atribui a invenção da dialética (DIÓGENES LAÉRCIO, 1925, 435) – afirmavam a unidade e a imutabilidade de tudo o que existe, considerando o movimento e a mudança como ilusões engendradas pelos sentidos. Estas posições seriam sintetizadas no pensamento de Platão, onde a dialética se converte no método filosófico por excelência, destinado a “determinar, sistematicamente e em todos os casos, a essência de cada coisa” (República, 533b2-3).

A oposição entre o puro devir de Heraclito e o puro ser de Parménides é suplantada, nos diálogos platónicos, pelo conceito de participação (μéθεξις, κοινωνíα) (cf. Sofista, 252d-253e): embora cada coisa possua uma existência particular, sujeita à voragem do mundo sensível, a sua definição remete necessariamente para um conjunto de ideias ou formas imutáveis (εἴδη), nas quais participa. Assim, e.g., o termo “mesa” designa ao mesmo tempo uma determinada mesa, diferente de todas as outras, e a ideia “mesa”, comum a todas elas (República, 596a), e esta ideia participa, por seu turno, num conjunto de ideias mais abrangentes, como “corpo”, “solidez” ou “unidade”. Os diálogos põem a descoberto este sistema de relações: partindo de um determinado conceito, Sócrates identifica as diferentes ideias que o compõem e o modo como se articulam entre si. Mas este exercício destina-se a revelar, ao mesmo tempo, o carácter globalmente aporético deste sistema. Os interlocutores de Sócrates, incapazes de definir de modo consistente os conceitos a que recorrem diariamente, são levados a reconhecer a sua natureza obscura e contraditória. E a dialética surge, assim, como uma forma de “purificação” (καθαρμός), destinada a desalojar a pretensão de conhecimento que caracteriza o ponto de vista comum e a abrir caminho à obtenção de conhecimento verdadeiro (Sofista, 230b-d).

Na Idade Moderna, o conceito de dialética foi retomado e redefinido no contexto do chamado idealismo alemão. Na Crítica da Razão Pura, Kant procede a uma reforma crítica da metafísica tradicional, baseada na distinção entre o que pode ser conhecido pela mente humana – a realidade empírica, através da sensibilidade e do entendimento – e o que é, por definição, incognoscível – a realidade em si mesma, independente da sua representação empírica. O primeiro caso é discutido na secção denominada “Analítica transcendental”, destinada a mostrar que todo o conhecimento deriva da aplicação das categorias do entendimento aos dados fornecidos pelos sentidos. O segundo é analisado ao longo da “Dialética transcendental”, onde Kant procura mostrar que a razão, ao abandonar o domínio da experiência sensível e ao focar-se em ideias como Deus, a alma ou a totalidade do universo, é levada a uma série de contradições insolúveis. O exemplo paradigmático é o debate entre o determinismo e a liberdade (cf. KANT, 1923, 374-379): segundo Kant, tanto a afirmação de uma cadeia causal ininterrupta, que determine todos os eventos do universo, como a possibilidade de uma causa primeira, não determinada, são defensáveis; no entanto, os domínios a que se aplicam são diferentes. A primeira posição é valida na esfera da realidade sensível, subordinada às leis do espaço e do tempo, mas a segunda só pode ser concebida na esfera da realidade em si, independente da lei da causalidade. Ora, quando o entendimento ignora esta distinção, estendendo as suas categorias para lá do mundo sensível, é forçado a aceitar a validade simultânea de ambas as soluções e o dilema torna-se irresolúvel.

Para Kant, a dialética é, pois, uma “lógica da ilusão” (KANT, 1923, 269), que pode ser evitada mediante o reconhecimento dos limites da razão humana. Esta posição contrasta com a que seria defendida, mais tarde, por Hegel, para quem a dialética não é apenas sinónimo de contradição, mas implica também uma componente resolutiva. Na esteira de Platão, Hegel procura mostrar que as tentativas de definir os conceitos a que recorre o ponto de vista comum conduzem a uma série de aporias e que só um questionamento radical das “ideias, pensamentos e opiniões ditas naturais” permite a procura do conhecimento verdadeiro (HEGEL, 1986, 73). Mas esta atitude corresponde apenas à parte negativa do processo dialético, a que deve seguir-se um momento positivo, ou especulativo (cf. HEGEL, 1979, 50 ss.). O confronto com as contradições que caracterizam o ponto de vista natural conduz à descoberta de novos pontos de vista, que sintetizam e transcendem os termos em confronto, e estes novos pontos de vista revelam, por seu turno, novas contradições e a necessidade de novas sínteses. Esta progressão imanente é o motor do sistema hegeliano, e o seu âmbito não se cinge à lógica ou à epistemologia: a reforma crítica proposta por Hegel abarca todas as dimensões da experiência humana, dos conceitos fundamentais do pensamento lógico às leis que regem o mundo natural e aos princípios e instituições que estruturam a vida social e política.

A influência de Hegel é visível em autores e doutrinas muito diferentes. Por um lado, pensadores como Kierkegaard ou Karl Barth associam a dialética à relação entre o humano e o divino, mas rejeitam a possibilidade de uma resolução imanente das contradições reveladas pelo processo dialético, apelando à transcendência da fé cristã. Por outro, Marx e Engels retomam o método dialético, mas propõem-se separá-lo do “invólucro místico” do idealismo hegeliano (MARX, 1991, 17). O resultado é um entendimento materialista da realidade que atribui a evolução do mundo natural e o progresso histórico ao confronto entre elementos ou forças contraditórias. Historicamente, este processo consiste na luta entre forças sociais dominantes e dominadas e culmina, na Idade Moderna, no conflito entre a classe capitalista, detentora dos meios de produção, e a classe proletária, forçada a vender a sua força de trabalho para sobreviver.

 

Bibliog.: DIÓGENES LAÉRCIO, Lives of Eminent Philosophers, vol. ii: Books 6-10, trad. DICKS, H. R., Cambridge, Harvard University Press, 1925; GONZALEZ, Francisco J., Dialectic and Dialogue: Plato’s Practice of Philosophical Inquiry, Evanson, Northwestern University Press, 1998; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich, Wissenschaft der Logik, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1979; Id., Phänomenologie des Geistes, Frankfurt am Main, Suhrkamp, 1986; KANT, Immanuel, Kritik der Reinen Vernunft, Berlin/Boston, De Gruyter, 1923; MARX, Karl, Marx/Engels Gesamtausgabe, vol. 10, 2: Das Kapital. Kritik der Politischen Ökonomie. Erster Band, Hamburg 1890, Berlin/Boston, De Gruyter, 1991; NORMAN, Richard e SAYERS, Sean, Hegel, Marx and Dialectic: A Debate, Brighton, Harvester Press Ltd., 1980; PLATÃO, Theaetetus, Sophist, ed. e trad. EMLYN-JONES, Chris e JONES, William, Cambridge, Harvard University Press, 1921; Id., Republic, vol. ii: Books 6-10, ed. e trad. EMLYN-JONES, Chris e JONES, William, Cambridge, Harvard University Press, 2013; RESCHER, Nicholas, Dialectics: A Classical Approach to Inquiry, Berlin/Boston, De Gruyter, 2013.

 

Bernardo Ferro

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