Uma emergência espiritual (EE), um jogo de palavras – a partir de um duplo sentido para a expressão que é dado pelas palavras “emergency”, no sentido de crise, e “emergence”, no sentido de emergir de algo – criado pelo psiquiatra Stanislav Grof e pela mulher, Christina Grof, traduz-se numa crise psicológica profunda de natureza transpessoal, cujas manifestações e sintomas físicos e mentais, pelo seu cariz dramático e invulgar, podem ser confundidos com os de uma perturbação psiquiátrica tradicional de base biológica (GROF e GROF, 1989; 1991). As pessoas que descrevem uma EE relatam episódios nos quais, sem que o consigam controlar, experimentam estados ampliados de consciência, que podem incluir manifestações inusitadas e incontroláveis de ordem física (espasmos, vibração, tremores, alterações na temperatura), emocional, percetiva e comportamental, muitas vezes acompanhadas de conteúdos mentais de cariz espiritual (Id., Ibid.).
Ainda que não seja fácil classificar com rigor os tipos de experiência, atendendo à diversidade de possíveis formas de os exteriorizar, existem padrões que se repetem, em termos de conteúdo e frequência, e que por vezes se sobrepõem e coincidem com outro tipo de manifestações de cariz transpessoal (GROF, 2007): despertar de energia kundalini, episódios místicos, viagens xamânicas, renovação psicológica pela ativação de arquétipos centrais, abertura psíquica, regressão a vidas passadas, estados de possessão, comunicação e canalização de espíritos-guias, contactos com ovnis e abduções por seres extraterrestres e ainda experiências de quase morte. Estas crises podem ocorrer de modo espontâneo ou podem ser desencadeadas por situações de sobrecarga física, mental ou emocional extrema, tais como partos, doenças, acidentes, perda ou rutura de relações ou, ainda, em resultado de práticas espirituais intensas.
Com efeito, as EEs, nas suas manifestações e efeitos típicos, têm vindo a ser descritas ao longo dos tempos, e em diversas tradições sagradas, como “despertar” ou “iluminação”, por místicos, xamãs, santos e visionários. No entanto, desde a déc. de 60 do séc. xx, verifica-se que se tornaram mais comuns em pessoas não iniciadas em qualquer tradição sagrada, em função do interesse crescente em torno de práticas espirituais da dita “nova era”, muitas delas importadas do Oriente ou envolvendo a utilização de substâncias psicadélicas. Por esse motivo, e para chegarem a este conceito de natureza integrativa, os autores lançaram mão de dados provenientes de várias áreas de conhecimento para além da psicologia e psiquiatria tradicionais, incluindo a parapsicologia, a antropologia, a filosofia, a religião comparada e a mitologia, bem como dados provenientes da exploração de estados ampliados de consciência. Efetivamente, muitos dos sintomas que surgem nestas crises são também típicos destes estados, que a psicologia transpessoal tem usado como uma das suas ferramentas de eleição, numa tentativa de ultrapassar a cisão entre ciência e espiritualidade e fazer convergir ambas as linguagens num diálogo comum, a partir do qual o seu potencial positivo de transformação pode ser demonstrado.
Com esta nova classificação, e após décadas de acompanhamento clínico de pessoas que atravessaram este tipo de processo, pretendeu-se chamar a atenção para o facto de que, em casos onde não se detete uma causa orgânica para as EE, estas possam significar uma manifestação de mecanismos evolutivos desconhecidos de autocura e que não devam ser diagnosticadas como doença mental nem submetidas a estratégias indiscriminadas de supressão medicamentosa de sintomas, que, nestes casos, não são adequadas para abordar sintomas para os quais a psiquiatria, a psicologia e a psicoterapia atuais, alinhadas pelo paradigma científico ocidental de base materialística, não dispõem de ferramentas ideais para aproveitar o seu potencial terapêutico.
Sem minimizar a importância de um diagnóstico diferencial que distinga casos que exigem uma intervenção médica especializada por serem de natureza claramente psicótica, uma crise de EE deverá ser, numa perspetiva transpessoal, considerada como uma situação não-patológica. Ainda que a passagem por estes estados, sem base orgânica conhecida, seja difícil e assustadora, não deverá ser ignorado o seu potencial terapêutico e evolutivo, no sentido da “emergência” de um ser humano espiritualizado e, potencialmente, mais saudável. Na verdade, tais estados, se validados e acompanhados de modo adequado, possuem um potencial interessante, na medida em que muitas vezes levam à remissão espontânea de diversas perturbações psicossomáticas e emocionais, a alterações benéficas de personalidade, à solução de problemas significativos e à evolução para estados mais elevados de consciência (GROF, 2007). Esta abordagem não colide com as abordagens clínicas correntes, na medida em que, mesmo quando se lida com questões puramente psicológicas, podem existir dificuldades coocorrentes que requerem intervenção médica.
O DSM-V, o manual de referência da prática clínica em saúde mental, na sua quinta edição, veio incluir a categoria diagnóstica de “problemas religiosos e espirituais”, fruto do impulso dado por parte dos terapeutas da linha transpessoal a fim de fazer face à necessidade de dar atenção clínica a estas questões, que se tornaram de algum modo mais correntes (LUKOFF et al., 1998). Ainda que a assistência terapêutica transpessoal neste tipo de crises seja ideal, qualquer estratégia de acompanhamento deste tipo de situação, para além do diagnóstico diferencial, deverá ser de apoio no processo e de cooperação com o indivíduo, de modo a aproveitar o potencial positivo de transformação, de maneira a que não seja confundida com uma perturbação psicótica e possa conduzir à autorrealização do indivíduo como ser humano integral.
Bibliog.: AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, DSM V – Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais, Lisboa, Climepsi Editores, 2014; GROF, Stanislav, A Psicologia do Futuro. Lições da Investigação Moderna sobre a Consciência, trad. CRUZ, Selena, Porto, Via Óptima, 2007; GROF, Stanislav e GROF, Christina (eds.), Spiritual Emergency: When Personal Transformation Becomes a Crisis, Los Angeles, Jeremy P. Tarcher, Inc., 1989; Id., The Stormy Search for the Self: Understanding and Living with Spiritual Emergency, London, Mandala, 1991; LUKOFF, D. et al., “From spiritual emergency to spiritual problem: The transpersonal root of the new DSM-IV category”, Journal of Humanistic Psychology, vol. 38, n.º 2, 1998, pp. 21-50.
Sofia Machado Ferreira