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Eros

 

Termo de difícil tradução para português e sem equivalente direto. Na literatura antiga, surge como expressão de desejos que exprimem uma necessidade natural e ínsita de satisfação (e.g., por comida, bebida e sono). Outros casos existem, porém, em que está em causa a multiplicidade de fenómenos que compreendemos como amor-erótico, paixão ou enamoramento, mas como força externa ou potência estrangeira que sobrepuja.

Subordinado a Afrodite, nos textos de Homero, onde surge como força abstrata, converte-se numa divindade na escrita de Hesíodo (Teogonia). Topos de destaque na poesia lírica, na tragédia e na comédia, atravessa várias escolas e correntes na tradição filosófica, onde é recorrentemente pensado na sua associação à loucura (mania) e à doença (nosos). Considerado como um fenómeno profundamente negativo, será apenas no contexto do pensamento platónico que: i) se apresenta a possibilidade de entrever no fenómeno da paixão algo de positivo; e ii) se passa da compreensão de eros como força exterior que invade para a compreensão de eros como força endógena.

Em contexto religioso cristão, ἔρως (eros) é um ausente notável dos textos bíblicos, exceção feita a Pr 7, 18; 30, 16 (Septuaginta), onde surge pejorativamente associado ao Hades e à insaciabilidade. Ainda assim, e apesar de privilegiarem o termo ἀγάπη (agape) e as suas formas linguísticas, os tradutores gregos da Septuaginta exprimem amiúde fenómenos que se prendem com o enamoramento (Gn 24, 67; 29, 18.20.30; 1Rs 11, 2). Isso é bastante evidente na celebração do amor presente no Cântico dos Cânticos, que retoma com especial vigor a carga nosológica da paixão e  passa para o esforço de leitura desse texto feita na tradição, não só nos comentários (Orígenes, S. Bernardo de Claraval, Guilherme de Saint-Thierry, S.ta Teresa de Ávila), como também nas reflexões teológicas e filosóficas sobre o amor propostas por autores como S.to Agostinho, S. João Crisóstomo, S. Metódio, S. Boaventura, S. Tomás de Aquino, Duns Escoto, Mestre Eckhart ou S. João da Cruz. De todas essas reflexões e cruzamentos, bem como do acolhimento muitas vezes desfavorável dos fenómenos associados a eros, resultou uma clivagem radical entre eros e agape. Pensada com seriedade ao longo de vários séculos, essa oposição reflete-se nalgumas obras incontornáveis: Kjerlighedens Gjerninger (As Obras do Amor), de Sören Kierkegaard, publicada em 1847; The Allegory of Love (1936), de C. S. Lewis, que estuda a tradição medieval associada ao Romance da Rosa, expoente do amor cortês; O Amor e o Ocidente (L’Amour et L’Occident, 1938), de Denis de Rougemont, que segue a pista das relações profundas entre eros e o célebre romance medieval de Tristão e Isolda, o ideal de cavalaria, o amor cortês, a heresia dos cátaros, a mística cristã, a literatura e a arte romântica ocidental, o matrimónio cristão e a possibilidade de agape salvar eros; e Eros och Agape (Agape and Eros, déc. de 1930), do sueco protestante Anders Nygren, que extrema a oposição entre as duas modalidades de amor.

Neste quadro, importa referir também o conjunto de catequeses do Papa João Paulo II ministradas entre 1979 e 1984 e dedicadas à teologia do corpo, que retomam a importância do Cântico dos Cânticos na tradição e pensam – nalguns pontos de forma mística, inclusive – a relação entre eros e agape, bem como a possibilidade de o primeiro ser purificado pelo segundo. No séc. xxi, esta linha de pensamento continua bem presente, como resulta claro da leitura da encíclica Deus Caritas Est (2005), do Papa Bento XVI, que começa precisamente com a exploração dos problemas de linguagem associados ao termo “amor” (§ 2) e à diferença e unidade entre eros e agape (§§ 3-8) e que continua com a possibilidade de haver uma retoma de eros em agape, não com base no amor pagão, mas no amor cristão.

 

Bibliog.: Cântico dos Cânticos, trad., introd. e notas MENDONÇA, José Tolentino de, Lisboa, Cotovia, 2008; CYRINO, M. S., In Pandora’s Jar. Lovesickness in Early Greek Poetry, Lanham, University Press of America, 1995; LEWIS, C. S., The Allegory of Love, Oxford, Oxford University Press, New York, 1958; MENDONÇA, José Tolentino, A Leitura Infinita. Bíblia e Interpretação, Lisboa, Assírio e Alvim, 2008; NUSSBAUM, M. C. e SIHVOLA, J. (eds.), The Sleep of Reason. Erotic Experience and Sexual Ethics in Ancient Greece and Rome, Chicago/London, The University of Chicago Press, 2002; OSBORNE, Thomas M., Love of Self and Love of God in Thirteenth-Century Ethics, Notre Dame, University of Notre Dame Press, 2005; ROUGEMONT, D., O Amor e o Ocidente, trad. HATHERLY, Ana, 2.ª ed., Lisboa, Vega Editora, 1999; ROUSSELOT, P., Pour l’Histoire du Problème de l’Amour au Moyen Age, dissertação apresentada à Université de Paris, Paris, texto policopiado, 1908; THORNTON, Bruce S., Eros. The Myth of Ancient Greek Sexuality, Boulder, Westview Press, 1977; VACEK, E. C., Love, Human and Divine. The Heart of Christian Ethics, Washington D. C., Georgetown University Press, 1994.

 

Álvaro Almeida

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