Na mundividência mítico-religiosa dos antigos gregos, em especial nas literaturas homérica e hesiódica, designa a morada invisível, subterrânea e bolorenta dos mortos, envolta em névoa e trevas e governada pelo deus Hades. Em conexão com o destino das almas depois da morte, foi objeto de atenção por parte de correntes religiosas e filosóficas tão diversas como os mistérios de Elêusis, o orfismo, o pitagorismo e o platonismo. Dentro da religiosidade judaica, o seu equivalente é o Sheol. Essa equivalência deve-se aos tradutores da Septuaginta, que verteram a palavra hebraica “שאול” para a palavra grega “ᾅδης”, mas também a alguns pontos de contacto evidentes entre a visão da morte numa cultura religiosa e na outra. Assim é que o Hades do Antigo Testamento é um lugar ao qual também se desce após a morte, da mesma maneira que se desce à cova ou à sepultura, e cujas profundezas são as profundezas da terra.
Quanto ao estado ou condição dos mortos no mundo subterrâneo, eles encontram-se aí sem força, sem a possibilidade de louvarem Deus ou de exaltarem a sua bondade e a sua fidelidade, pois a região da morte é uma terra de esquecimento e de escuridão, onde as trevas são eternas, onde não há ordem e onde a própria luz se converte em escuridão. Aí, os mortos nada sabem e as suas paixões desapareceram. Em contexto especificamente cristão, e com influência judaica, no Novo Testamento o Hades ainda representa um mundo ao qual se desce. Apesar de a palavra “ᾅδης” ocorrer poucas vezes, existem alguns passos em que são introduzidos alguns pormenores muito próprios, dos quais o mais rico e desenvolvido será o de Lc 16, 19-31, que narra a parábola do rico anónimo e do pobre Lázaro. Aí, o Hades é descrito como lugar de tormento, de onde apenas se pode avistar o seio de Abraão ao longe, quando se erguem os olhos, onde se encontra grande dor nas chamas que lá ardem, e que não permite qualquer passagem ou travessia para esse outro lugar de consolo, pois um grande abismo os separa. Noutros passos, evidencia-se uma conexão profunda entre a figura de Cristo e o Hades, ou, mais especificamente, entre o poder de Cristo e o poder do Hades.
Codificado como Inferno na tradição cristã, o mundo dos mortos adquiriu particular proeminência nas discussões teológicas sobre a doutrina da descida de Cristo aos infernos introduzida pelo Símbolo dos Apóstolos. Entre os planos teológico e literário, a sua grande representação encontra-se na Divina Comédia, de Dante Alighieri (1265-1321), símbolo poético do itinerário da alma pecadora que passa através do Inferno e do Purgatório até chegar ao Céu.
No séc. xx, em Portugal, a conceção cristã do Inferno adquiriu renovado vigor com as aparições de Fátima, mais concretamente com a visão do Inferno, que reapresenta aspetos tão característicos como o fogo infernal, os demónios de formas bestiais e horríveis e o sofrimento das almas pecadoras.
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Álvaro Almeida