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Lamentação

A tradição da lamentação não deixa de ser um paradoxo entre a aceitação da vontade divina e a intercessão melancólica. Remonta ao livro bíblico atribuído ao profeta Jeremias, que chora poeticamente sobre as ruínas do Templo de Jerusalém. Nos evangelhos, Jesus semelhantemente lamenta sobre a futura destruição da cidade santa (Mt 23, 37), porém, o momento mais marcante da espiritualidade são as gotas de sangue derramadas na angústia do Getsêmani (Lc 22, 44). Na Epístola aos Romanos, Paulo ampliou para uma espécie de lamentação cosmológica, perpassando toda a criação, que suspira pela redenção final (Rm 8, 19-22).

Ainda que na literatura mística o principal tema seja o regozijo e o sentimento de completude, a lamentação pelos pecados do mundo também ocorreu com frequência. Foi incorporada cedo nas liturgias da Paixão de Cristo e atribuída à santidade pelos pais da Igreja. Os autores marcados pelo neoplatonismo trouxeram o costume de lamentar pela prisão do corpo. Nessa tradição espiritual, há proximidades entre a alma e a manifestação divina, em oposição ao mundo material, que se encontra marcado pelo pecado (OTTEN, 2013). Ainda no séc. xv, a santa flamenga Cristina La Arrobada clamava, ao entrar em levitação: “Oh miserável e infeliz corpo! Por quanto tempo irás atormentar-me? Porque me impedes de ver o rosto de Cristo?” (apud BYNUM, 1990, 203). S.to Agostinho (1998, 43) escreveu que “na alma o ótimo é a sabedoria e no corpo o péssimo é a dor”. Na teologia escolástica, essa distinção foi atenuada, passando o sofrimento a mobilizar as duas instâncias. A oração da “Salve Regina”, composta no séc. xi, reproduz essa forma de interceder pelos que sofrem no “vale de lágrimas”.

As figurações da crucificação, semelhantemente, abandonam a aparência incólume anterior para demonstrarem cada vez mais as feridas abertas e o sofrimento do Filho de Deus. No mundo contemporâneo, as lágrimas pesarosas manifestaram-se em várias imagens, em especial nas de Nossa Senhora, sob diversas invocações, tendo surgido tanto na forma aquática (Siracusa, Itália) quanto na sanguínea (Guadalajara, México). Em Campinas, estado de São Paulo, existe uma devoção dedicada à Nossa Senhora das Lágrimas (CARRASQUINHO, 2017).

 

Bibliog.: AGOSTINHO DE HIPONA, Solilóquios: A Vida Feliz, São Paulo, Paulus, 1998; Bíblia de Jerusalém, 5.ª ed., São Paulo, Paulus, 2008; BYNUM, Caroline Walker, “El cuerpo feminino e la pratica religiosa en la Baja Edad Media”, in FEHER, Miklós (ed.), Fragmentos Para Una Historia del Cuerpo Humano, vol. i, Madrid, Taurus Editora, 1990, pp. 163-226; CARRASQUINHO, Renato, Devocionário a Nossa Senhora das Lágrimas, São Paulo, Edição Apostolado Internacional de Nossa Senhora das Lágrimas, 2017; OTTEN, Willemien, “Platonism”, in LAMM, Julia A. (ed.), The Willey-Blackwell Companion to Christian Mysticism, Oxford, Willey-Blackwell, 2013, pp. 56-74.

 

Eduardo Gusmão de Quadros

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