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Literatura

O termo “literatura” passou a nomear o amplo espectro da criação artística verbal durante o séc. xviii, um tempo de ascensão de um género em prosa, o romance, que, apoiado num novo público burguês, será o grande protagonista das letras do séc. xix. Via-se assim ultrapassada a anterior designação genérica de “poesia”, um dos vocábulos usados, já desde Platão e Aristóteles, para nomear o fenómeno literário, embora houvesse expressões alternativas, como aquela que Miguel de Cervantes põe na boca de um seu personagem da primeira parte de El Ingenioso Hidalgo D. Quijote de la Mancha (1605): “ciencias de la poesía y de la oratória” (CERVANTES, 1982, 543).

A literatura e a espiritualidade têm em comum a sua relação íntima com a palavra: o facto de escolherem como cenário a linguagem humana. Poder-se-ia dizer que a primeira é a palavra em forma de beleza, ars bene dicere, como propunha a antiga retórica latina, e a segunda a palavra em forma de revelação. Existe, pois, uma cumplicidade natural entre estas duas dimensões que partilham um mesmo magma verbal. Deste modo, desde os primórdios da história da literatura – sendo a obra mais antiga conhecida Gilgamesh, surgida na Mesopotâmia e datável, nas suas versões mais recuadas, c. 1800 a.C. –, surgem textos religiosos que são literários, textos literários que são religiosos, e.g., o Livro dos Mortos, onde se espelha o antigo Egito, os Vedas e o Mahabharata, obras maiores do hinduísmo, redigidas em sânscrito, e a Bíblia. Esta última, em alguns dos seus livros, ganha em ser entendida como revelação e como literatura, sem que estas duas dimensões entrem em conflito. No mundo helénico, encontramos, além do sopro divino presente nas epopeias homéricas e da Teogonia, de Hesíodo, o caso da tragédia: esta forma teatral, que tão grande fortuna terá na literatura ocidental, possuía originalmente uma dimensão religiosa, funcionando como uma cerimónia de aprendizagem espiritual.

Note-se que esta cumplicidade entre espiritualidade e literatura abrange todos os géneros: desde a poesia de índole religiosa, onde se destacam nomes como Juan de la Cruz ou John Donne, até à narrativa – que tanto pode ser autobiográfica, como no caso do Libro de la Vida ou do Libro de las Fundaciones, de S.ta Teresa de Ávila, como hagiográfica –, passando pelo teatro de inspiração espiritual, no qual se integram as “moralidades” vicentinas. Surgiram mesmo modalidades genéricas especificamente religiosas, como, no âmbito da lírica, o salmo bíblico ou os laudi medievais, criados pelo frade franciscano Jacopone da Todi, ou os autos sacramentais no campo do género dramático.

Contudo, a literatura não se pode limitar apenas, de modo algum, à espiritualidade. No texto literário, reflete-se a personalidade de um autor, o que deu lugar à crítica biografista (Charles-Augustin Sainte-Beuve, entre muitos outros), bem como a época histórica e o meio social em que a obra se situa, o que liga o estudo da literatura, desde Hippolyte Taine, à historiografia e aos estudos de cultura. No séc. xx, esta relação entre o texto literário e o seu meio deu origem a novas propostas, como as da pragmática literária (e.g., Teun A. van Dijk) e da sociologia da literatura (Lucien Goldmann, entre outros). Na palavra literária, porém, aquilo que principalmente se projeta é a própria linguagem, como demonstraram os formalistas russos ou os estruturalistas, na linha de Roman Jakobson, bem como os estudiosos pertencentes ao New Criticism, como T. S. Eliot, e à estilística idealista (Leo Spitzer, Dámaso Alonso…), tendências surgidas durante a primeira metade do séc. xx. Entretanto, na voz de um autor literário, ouvimos ecos de outras vozes, o que deu lugar à chamada crítica das fontes (e.g., Gustave Lanson) e à noção de intertextualidade, proposta por Julia Kristeva. Por fim, a literatura é também espelho para o próprio leitor, que contribui decisivamente para a construção do sentido do texto, como se sabe pelos chamados estudos de receção (Roman Ingarden, Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Umberto Eco). A obra literária funciona, portanto, como uma encruzilhada, como uma deriva de sentidos, ideia esta de Jacques Derrida, em que confluem muitas dimensões, entre elas a da espiritualidade.

No âmbito europeu e ocidental, destacam-se quatro formas de estudar a cumplicidade entre as esferas religiosa e literária. Em primeiro lugar – e tomando como modelo o diálogo inter-religioso –, analisa-se a literatura espiritual de outras culturas que não as cristãs, desde a produção dos escritores budistas japoneses (Yoshida Kenkō, Kenji Miyazawa, Abutsu, Kūkai…) até aos grandes clássicos chineses (e.g., Lao-Tsé ou Confúcio), passando pela riquíssima tradição islâmica, e.g. na vertente da sua poesia sufi (Jalaladim Maomé Rumi, Ibn Arabi, Idries Shah, Mulla Sadra, Syed Misri Shah, entre outros), sem esquecer o vasto património literário hindu, antes referido, e ainda o de outras culturas. Em segundo lugar, numa outra linha, mais filiada no ecumenismo, presta-se atenção à grande variedade da literatura produzida pela espiritualidade cristã no seu sentido mais amplo, desde os escritores do âmbito bizantino e ortodoxo (Cosme, o Melódico; Georges Pisida; Romano, o Melódico; Teofânio, o Confessor…) aos do múltiplo universo protestante (Thomas Traherne, N. S. F. Grundtvig, Ann Griffiths, entre outros), sem deixar de lado a ampla tradição literária de matriz católica. Com efeito, esta última, por si só, constitui também um campo de estudo de notável densidade. Bastaria o amplo universo da literatura conventual, surgido desde S. Bento, no séc. vi, o qual conta com uma vasta produção textual, também feminina, para se estudar um esplendor cultural artístico e literário, ainda hoje visível, e.g., na Abadia de Montserrat, na Catalunya. A literatura espiritual católica – que é, com efeito, a base da terceira via no estudo das relações entre a criação literária e a espiritualidade – inclui figuras tão diversas e magnas como S.to Agostinho, Hildegarda de Bingen, Ramon Llull ou Dante Alighieri, entre muitos outros.

Talvez um dos modos mais sugestivos e contemporâneos de estudar as relações entre literatura e religião seja o que aqui elencamos: aquele que encontra veios espirituais imprevistos em criações notáveis que, aparentemente, pouco ou nada teriam a ver com o âmbito da fé. É assim que se descobre a inquietação espiritual de escritores tão diversos como Fernando Pessoa, Carlos Fuentes, Jorge Luis Borges, Albert Camus, Katherine Mansfield ou Peter Handke. Este campo de estudo corre em paralelo àquele que se centra em autores laicos mais canonicamente relacionados com a religiosidade, como, citando apenas nomes do âmbito católico, G. K. Chesterton, Gabriela Mistral, Giovanni Papini ou Miguel de Unamuno, entre muitos outros. De resto, as relações entre espiritualidade e literatura, sendo tão evidentes na história destas duas dimensões do ser humano, ainda não foram sistematicamente estudadas, tendo prevalecido, a partir do séc. xix, um olhar “laico”, algo assético, na abordagem do texto literário.

 

Bibliog.: CERVANTES, Miguel de, El Ingenioso Hidalgo D. Quijote de la Mancha, ed. ALLEN, John Jay, vol. i, 4.ª ed., Madrid, Cátedra, 1982;  JOSSUA, Jean-Pierre, Literatura i Absolut: Per a Una Teología literaria, trad. LLOPIS, Joan, Barcelona, Fundació Joan Maragall/Editorial Cruïlla, 2000; MATOS, Maria Vitalina Leal de, Introdução aos Estudos Literários, Lisboa, Verbo, 2001; MONROY, Juan Antonio, Literatura y Espiritualidad, Viladecavalls, CLIE, 2017; PERPINYÀ, Núria, Las Criptas de la Crítica: Veinte Interpretaciones de la Odisea, Madrid, Gredos, 2008; POZUELO YVANCOS, José María, Teoría del Lenguaje Literario, 4.ª ed., Madrid, Cátedra, 1994; REIS, Carlos, O Conhecimento da Literatura: Introdução aos Estudos Literários, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 1999; SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e, Teoria da Literatura, 8.ª ed., Coimbra, Almedina, 1988; Id., Teoria e Metodologia Literárias, Lisboa, Universidade Aberta, 2001.

 

Gabriel Magalhães

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