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Modernidade

O conceito de modernidade implica uma visão do mundo que engloba um conjunto de crenças e valores, basicamente o que antigamente era conhecido por Iluminismo, Filosofia das Luzes (no mundo francófono), Enlightenment (no mundo anglófono) e Aufklärung (em alemão). Foi só a partir da segunda metade do séc. xx que o termo “modernidade” entrou em circulação. As crenças dominantes associadas à visão que se sobrepôs à mundividência medieval são: 1) o universo é conhecível e o ser humano é senhor do seu uso; 2) todos os seres humanos são livres e iguais; 3) o ser humano é perfectível. Antecedendo esses axiomas, e servindo-lhes de suporte, embora estes sejam aceites como dado adquirido, está a crença de que o mundo é bom. A razão passa a ser a linguagem-ponte que permitirá harmonizar aqueles axiomas entre si. Do primeiro axioma resulta a legitimidade da ciência, da tecnologia e da atividade económica. Na ciência, como em tudo o mais, o critério fundamental de verdade passa a basear-se na experiência e na razão, já não na revelação divina, nem em qualquer autoridade humana individualizada. Do segundo axioma resulta a democracia, com os seus conflituosos, às vezes contraditórios, ideais de liberdade e igualdade em busca de harmonização, mas nem por isso menos fundamentais. Ao terceiro axioma está inerentemente associada a ideia de progresso, e dele resultam todas as instituições destinadas a melhorar o ser humano e a torná-lo mais apto a usufruir dos bens viabilizados pelos axiomas anteriores. A educação, como meio de perfectibilidade democraticamente generalizada, enquadra-se neste conjunto.

Subjacente a essa tríade – ciência/tecnologia, liberdade/igualdade e progresso –, está uma valoração ética fundamental que é pressentida, mas raramente articulada: o mundo é bom. Não no sentido rousseauniano, mas em contraposição à atitude da teologia cristã medieval que considerava o mundo um lugar de passagem e, sobretudo, capaz de pôr em perigo o Outro Mundo, o Bom. É sabido quanta influência a teologia protestante (a teologia das realidades terrestres) exerceu na teologia católica que precedeu a criação de um documento como a Gaudium et Spes no Vaticano II. Quanto à origem protestante dessa atitude positiva relativamente ao mundo material, os ensaios de Max Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo, nomeadamente os capítulos relativos ao surgimento do “ascetismo terreno” por oposição ao ascetismo voltado para o “Outro Mundo”, constituem um valioso auxiliar para o entendimento dessa transformação ocorrida na mentalidade europeia.  Werner Sombart, porém, identificou essa relação com o mundo material como existente já na ética do Antigo Testamento.

São inúmeras as propostas de identificação histórica das manifestações dos valores da modernidade. Alguns deles, como o do primado da evidência empírica no conceito de verdade, surgiram isoladamente durante a Baixa Idade Média. Hoje, tornou-se comum referir os três séculos entre 1500 e 1800 como pré-modernos (o período designado no mundo anglófono por Early Modern). A modernidade manifesta-se nas suas facetas diversas (ainda antes de ser reconhecida por esse nome) em múltiplas formas no Ocidente. Por exemplo, no domínio do interesse pelo conhecimento da natureza há claros contributos de figuras medievais, como, e.g., Roger Bacon, no séc. xiii. Essa vertente que conduzirá à ciência moderna está também claramente patente nos escritos de viagens portuguesas da segunda metade do séc. xv e do séc. xvi. Esses mesmos relatos terão levado Francisco Sanches, em 1581, a advogar a necessidade de se substituir o conhecimento silogístico pelo recebido através dos sentidos. Mas existem igualmente claros sinais dessa modernidade para além das fronteiras europeias. A partir do séc. xvii, é sobretudo no centro da Europa, especialmente em França, Alemanha, Holanda e Inglaterra, que surgem e ganham terreno as ideias que irão conduzir ao Estado moderno, cuja autoridade passará a assentar num contrato social. Elas inspiram tanto a Revolução Francesa – que, acima de tudo, foi uma epopeia contra a antiga mundividência herdada do mundo medieval – como a criação dos Estados Unidos, que constitui, no fundo, a primeira grande tentativa de materialização da utopia europeia da modernidade, se assim lhe quisermos chamar.

Nomes como Montaigne, Francis Bacon, Isaac Newton, John Locke, Galileu, Descartes, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, David Hume, Kant e Diderot são apenas alguns dos pais da modernidade. No séc. xix, Marx, Nietzsche e Darwin são indiscutíveis, pela marca revolucionária, influente e duradoura, do seu pensamento.

Na segunda metade do séc. xx, as ciências sociais, e particularmente a sociologia, introduziram o termo “modernidade”, passando ele a substituir a terminologia herdada da filosofia. Anteriormente, no final do séc. xix e na primeira metade do séc. xx, tanto no domínio das ideias como no das artes, o termo usado era “modernismo”. No caso particular do pensamento católico, modernismo era um conceito com carga negativa, ao contrário do que acontecia no domínio das artes, onde o termo significava inovadora criatividade em múltiplas dimensões. No caso da Igreja Católica, os valores modernistas foram mesmo objeto de condenação oficial (cf. ALMEIDA, 2018). Nos últimos tempos, os valores da modernidade têm também sido alvo de fortes críticas, particularmente depois dos abusos criminosos do nazismo e do comunismo. Os defensores da modernidade, porém, insistem no facto de não existirem alternativas melhores e explicam que os abusos levados a cabo em seu nome, não sendo justificáveis, não invalidam a sua atualidade e premência.

A chamada pós-modernidade não destruiu os valores da modernidade, simplesmente chamou a atenção para a impossibilidade de terem carácter absoluto. O Estado moderno assente neles procura o equilíbrio entre todos esses valores, consoante o peso das forças políticas que os defendem com divergentes prioridades.

 

Bibliog.: ALMEIDA, Onésimo Teotónio, “Modernidade, pós-modernidade e outras nublosidades”, Cultura – História e Filosofia, n.º 22, 2006, pp. 49-69; Id., “Futurismo, modernismo, modernidade – Uma clarificação conceptual”, in RITA, Annabela e VILA MAIOR, Dionísio (orgs.), 100 Futurismo, Lisboa, Edições Esgotadas, Lda., 2018, pp. 29-42; FITZPATRICK, Martin et al. (eds.), The Enlightenment World. London and New York, Routledge, 2004; GAY, Peter (ed.), The Enlightenment. A Comprehensive Anthology, New York, Simon & Schuster, Inc., 1973; GRAY, John, Enlightenment’s Wake: Politics and Culture and the Close of the Modern Age, London, Routledge, 2007; HALL, Stuart et al. (eds.), Modernity: An Introduction to Modern Societies, Cambridge, Blackwell, 1996; PORTER, Roy, The Creation of the Modern World. The Untold Story of the British Enlightenment, New York/London, W. W. Norton & Company, 2000; SCHMIDT, James (ed.), What Is Enlightenment? Eighteenth-Century Answers and Twentieth-Century Questions, Berkeley/London, University of California Press, 1996; SORKIN, David, The Religious Enlightenment. Protestants, Jews, and Catholics from London to Vienna, Princeton/Oxford, Princeton University Press, 2008.

 

Onésimo Teotónio Almeida

 

 

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