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Moral

Moral é um conceito de etimologia latina (mos, moris = modo de proceder de acordo com os usos e costumes) que significa “costume”, “hábito”. Na sua distinção conceptual da ética, como racionalidade do agir e que responde à questão “porque ajo assim?”, a moral constitui uma normativa da ação humana, respondendo à questão “como devo agir?”, sendo, pois, de ordem prescritiva e dirigindo-se à vontade livre da pessoa.

A moral evidencia-se como uma constante indelével na história da humanidade, atendendo a dois aspetos decisivos: a perda dos instintos (reação a estímulos exteriores) por parte do humano, no curso da sua hominização, substituídos por ações voluntárias; a irredutibilidade da ação, sendo impossível não agir, porque mesmo a recusa da ação é ainda uma forma de ação. A inquietude moral, a preocupação por bem agir, constitui, assim, uma diferença qualitativa em relação aos demais seres e uma invariável antropológica. Justifica-se, pois, a distinção do filósofo espanhol Aranguren (1909-1996) entre uma ethica utens, uma moral vivida que corresponderá à noção atual de uma “moral comum”, i.e., uma moral pré-reflexiva partilhada no quotidiano de uma comunidade, e uma ethica docens, i.e., uma filosofia moral que, definindo racionalmente noções de “bem” e de “mal” em que se fundamenta um código de valores, princípios e virtudes, estabelece critérios de avaliação da moralidade da ação.

A constituição da ordem moral contemporânea ocidental, i.e, o conjunto de constituintes da vida moral atual em que as ações são avaliadas, é herdeira de uma longa e rica reflexão filosófica que Isabel e Michel Renaud sistematizaram cronologicamente em quatro momentos estruturantes. Um primeiro reporta-se à Antiguidade grega, pré-clássica e clássica, marcado pelo pensamento de Aristóteles e que globalmente se apresenta como Paideia, i.e, caracteriza-se pela afirmação da capacidade de o ser humano se realizar diferentemente pela sua ação, numa aceção dinânica (moldável, plástica) do seu ser, através da educação. Esta ideia prevalece até hoje na conceção do humano como ser perfectível e da moralidade como seu modo de aperfeiçoamento. A paideia refere-se, pois, à formação do homem novo pela prática das virtudes, cujo carácter intelectual é uma das suas características definidoras deste primeiro momento da constituição da ordem moral, herança de uma noção de bem que só por via do conhecimento se alcança. Entretanto, e particularmente com Aristóteles, estabelece-se uma clara distinção entre a prudência (jronhsiz) e a sabedoria (sojia), distinção fundamental que constitui a base do que virá a ser tematizado pela filosofia moral ocidental como razão prática e razão teórica, respetivamente. Os conceitos definidores deste primeiro momento são o bem (para que todas as coisas tendem), a práxis (ação imanente consubstancializadora do ser), o fim (que a ação realiza) e a virtude (por que se dá a perfectibilização do humano).

O segundo momento de constituição da ordem moral ocidental reporta-se à época medieval, sendo fortemente marcado por (Agostinho de Hipona e) Tomás de Aquino e caracterizando-se por um movimento de interiorização do humano, do seu aprofundamento espiritual, a partir do qual estabelece uma relação pessoal singular entre si Deus. Neste novo contexto, mantêm-se as noções de bem e de fim, que se identificam agora com Deus, tal como a de ação virtuosa na perfectibilização do ser, tomando agora a Cristo como modelo. A afirmação de Deus criador absoluto, princípio e fim de todas as coisas, é o novo contexto de inteligibilidade da ação humana. O cristianismo acrescenta, assim, outros constituintes para a ordem moral, como sejam:  a realidade da fé e sua relação com a moral (relação paralela da fé e razão); a possibilidade do pecado, mas também a existência do perdão divino; a temática da salvação, no horizonte infinito da vida eterna. A moral cristã, à semelhança da grega, desenvolve-se no plano das virtudes que se estruturam entre virtudes cardeais (prudência, justiça, fortaleza e temperança) e agora também teologais (fé, esperança e caridade). Neste contexto, evidencia-se a importância da experiência interior do Homem, acentuando-se a dimensão pessoal de cada um e o valor da vontade na ação humana (livre-arbítrio na adesão ou rejeição da lei de Deus).

O terceiro momento estabelece-se com Kant e com a sua autonomização da moral. O filósofo, a partir da distinção entre o determinismo da natureza e a causalidade da liberdade, distingue respetivamente o uso teórico do uso prático da razão, o que, por sua vez, não só rompe com a tradição moral intelectualista, em que o conhecimento do verdadeiro contribui para a perfectiblilização da ação, mas sobretudo viabiliza a autonomia da razão prática e estabelece uma moral também ela autónoma: a moralidade, a vontade boa ou racional, a ação correta ou realizada por dever, correspondem à lei moral universal. O agente, cuja vontade é pura e exclusivamente orientada pela razão, agirá sempre em total liberdade e, sendo a razão universal, cumprirá sempre a universalidade da lei moral, na coincidência entre a máxima particular de ação e a lei moral universal (imperativo categórico). Kant, através da autonomia da vontade racional, não só rompe com o intelectualismo moral, democratizando a moralidade, mas também com uma moral das virtudes, estruturando uma moral do dever, de carácter obrigatório, rompendo ainda com uma perspetiva teleológica, que aprecia a moralidade da ação a partir da bondade dos fins (consequencialista), e propondo uma perspetiva deontológica, que avalia a moralidade da ação a partir da retidão dos princípios (não-consequencialista).

O quarto momento corresponde à constituição da ordem moral como objetividade (superação da subjetividade da consciência moral) histórica (evolução do Espírito objetivo), na perspetivação do pensamento moral na sua dimensão histórica como horizonte da sua concretização. É Hegel quem introduz esta exigência de vivência e de realização efetiva da liberdade no universal concreto, em sucessivos planos institucionais, da família ao Estado, numa ética objetiva, síntese da exterioridade da lei (direito) e da subjetividade do indivíduo (moral), na obediência à lei moral estabelecida por normas e costumes. Este momento constitui também uma abertura da moral ao relativismo, numa exposição posteriormente alargada pelos designados “mestres da suspeita” (Nietzsche, Marx e Freud) na convergência da afirmação do cogito como produto de dinâmicas que o extravasam, e não como fundamento (cartesiano) do pensamento e da vontade, e depois aprofundada pela antropologia cultural que se centra no plano empírico em que o relativismo das normas sociais é evidente. O problema, que ainda persiste, é o da correspondência abusiva entre o incontestável relativismo cultural e o insustentável relativismo moral: se tudo é relativo, também a afirmação de que tudo é relativo é, ela própria, relativa. A adoção preferencial de uma perspetiva intercultural, centrada nas semelhanças entre as culturas, a uma multicultural, focada nas diferenças, permite identificar valores transculturais, universais, para além das expressões distintas por que se possam manifestar em diferentes espaços e tempos.

Hoje, vivemos um tempo de contraditórios em que uma pretensa autenticidade individual rejeita uma dita moral dos outros, ao mesmo tempo que se instalou uma ânsia de normalizar todos os domínios da atividade humana. De facto, a moral é uma construção humana que procura garantir a coexistência pacífica entre todas as pessoas, pelo que não existem morais individuais; simultaneamente, a tentativa de regulamentar toda a ação humana reduz a moral (o exercício livre da vontade) ao direito (ao cumprimento obrigatório da lei). Na contemporaneidade, caracterizada por um mosaico estilhaçado de orientações morais, tem-se vindo a impor a moral universal convencional dos direitos humanos, ao mesmo tempo que se desenvolvem processos de diálogo que legitimem os consensos a alcançar. A ética da discussão, ou comunicativa (Habermas, Appel), preconiza uma argumentação racional, entre todos os potenciais afetados, acerca das normas a estabelecer, adotando uma perspetiva procedimental. Após a queda dos universais morais (natureza, Deus, razão), em sociedades seculares e democráticas (pluralistas), é a construção dialogada dos consensos que permite manter uma moral dos mínimos.

 

Bibliog.: AGOSTINHO DE HIPONA, Obras de S. Augustin, t. i: De Vita Beata, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1947; Id., Obras de San Agustin, t. ii: Confessiones, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos, 1958; APEL, Karl Otto, Sur le Problème d’Une Fondation Rationnelle de l’Éthique, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1987; ARANGUREN, José Luís, Ética, Madrid, Alianza Universidad Textos, 1985; ARISTÓTELES, Éthique a Nicomaque,  introd., notas e índice TRICOT, J., 5.ª ed., Paris, J. Vrin, 1983; HABERMAS, Jurgen, Theorie de l’Agir Communicationel, Paris, Fayard, 1987; Id., De l’Éthique de la Discussion, trad. HUNYADI, M., Paris, Cerf, 1992; HEGEL, G. F. W., Système de la Vie Éthique, trad. e apresentação TAMINIAUX, J., Paris, Payot, 1976; KANT, Immanuel, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, trad. QUINTELA, Paulo, Coimbra, Atlântida, 1960; Id., Crítica da Razão Prática, trad. MORÃO, Artur,  Lisboa, Edições 70, 1986; RENAUD, Isabel e RENAUD, Michel, “Moral”, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 3, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1991, pp. 956-979; ROCHA, Acílio Estanqueiro, “Relativismo cultural e universalismo ético”, in NEVES, Maria do Céu Patrão, Ética: Dos Fundamentos às Práticas, Lisboa, Edições 70, 2016, pp. 183-210; ROSS, David, Aristóteles, trad. BRAGANÇA, Luís Filipe, Lisboa, D. Quixote, 1987; TOMÁS DE AQUINO, Somme Théologique, ts. 1-4, Paris, Les Éditions du Cerf, 1984-1996; WUNENBURGER, Jean-Jacques, Questions d’Éthique, Paris, PUF, 1993.

 

Maria do Céu Patrão Neves

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