A penitência, enquanto prática pastoral, faz parte de um universo mais sistematizado e hierarquizado da espiritualidade, embora haja reminiscências arcaicas. De um modo abrangente, as realidades religiosas dispõem de mecanismos pastorais para o exercício dessa prorrogativa, se bem que não usem por vezes esse termo (“pastoral”).
O judaísmo tardio tem na Torá o código social e religioso, por vezes rígido e até cruel no tratamento de desvios de conduta de indivíduos da comunidade, através de uma fórmula tradicional recitada. Em ocasiões como as festas de Rosh há Shana (Ano Novo) e Yom Kippur (Propiciação/Expiação), em geral, há dez dias de penitência, com interdição de trabalho e de realização de tarefas simples, para que haja absolvição dos pecados acumulados, com auxílio dos rabinos (HAYOUN, 2002, 232-248).
Tanto no hinduísmo como no budismo, não existe, como no cristianismo e no islamismo, a ideia de Juízo Final, havendo sim o ciclo dos Yugas, que implica a transmigração das almas e a libertação. Esse mecanismo essencialmente ético – o princípio do karma – pode produzir mérito ou demérito, com consequências nesta vida como em vidas futuras ou reencarnações, bastando viver de acordo com o dharma (a vida moral e correta) para obter mérito (PARTRIDGE, 2006, 158). É um ato penitencial individual, num princípio de justiça imanente, absoluto, ainda que muitas vezes diferido na sua concretização: mais tarde ou mais cedo.
O jejum e as esmolas prescritas no islamismo pelo profeta são o encontro com o criador e a purificação do corpo, assim como a peregrinação deve ser sincera, feita pelo menos uma vez na vida. São atos depurativos reveladores de agradecimento, arrependimento, disciplina, perdão e contrição (KÜNG, 2010, 173-180).
Entre os protestantes, grosso modo, se um ato imoral ou ilegal persiste, o indivíduo impenitente fica excomungado e impedido de livremente participar em certas cerimónias até que se penitencie, após um certo período, diante da assembleia de membros (PARTRIDGE, 2006, 18).
No universo católico, há uma preocupação com a reconciliação, desencadeando uma análise de natureza bíblica, histórica, dogmática e antropológica, procurando dar resposta aos enormes desafios sociais dos crentes, como, e.g., situações vividas por divorciados, pessoas que vivem em união de facto, toxicodependência, alcoolismo, homossexualidade, etc. O tema da misericórdia é o grande eixo que sustenta a coluna vertebral da penitência, numa espécie de ato judicial, com carácter terapêutico e medicinal, proporcionando absolvição (JOÃO PAULO II, 1984, 185-275).
Bibliog.: HAYOUN, Maurice-Ruben, “O judaísmo”, in DELUMEAU, Jean (ed.), As Grandes Religiões do Mundo, 3.ª ed., Lisboa, Editorial Presença, 2002, pp. 205-256; JOÃO PAULO II, Exortação Apostólica Pós-Sinodal Reconciliatio et Paenitentia de Sua Santidade João Paulo II ao Episcopado, ao Clero e aos Fiéis sobre a Reconciliação e a Penitência na Missão da Igreja hoje, Vaticano, Libreria Editrice Vaticana, 1984; KÜNG, Hans, Islão: Passado, Presente e Futuro, Lisboa, Edições 70, 2010; PARTRIDGE, Christopher, “Religiões indianas”, in Enciclopédia das Novas Religiões: Novos Movimentos Religiosos, Seitas e Espiritualidades Alternativas, Lisboa, Verbo, 2006, pp. 158-209.
Rogério Freitas