A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z

Qualidades (adquiridas e adstritas)

Significados originários e correntes

O termo “qualidade” significa, no seu imediato e intuitivo emprego linguístico, “aquilo pelo qual algo é do modo que é”. Atendendo à sua etimologia latina, a qualitas liga-se primariamente ao pronome qualis (“qual”), traduzível, no seu recorte interrogativo, por “de quê?”, i.e., “de que natureza?”, “de que espécie?”. Umbilicalmente vinculado a esse enraizamento etimológico, o termo “qualidade” sedimentou gradualmente o seu sentido nas ideias de propriedade, aquisição, poder, faculdade, carácter, nível, grau ou estatuto, abrindo espaço, nesse campo polissémico, para designar a determinação específica de um estado (ou condição) inerente à perceção experiencial de algo (vivo ou não vivo, real ou virtual), imerso num contexto ou situação, e, por conseguinte, constituindo-se – com maior ou menor grau de senciência ou consciência – como “própria” dele, ou seja, na medida em que é “apropriada-a-ele” (enquanto atributo já vinculado ou adstrito) ou “apropriada-por-ele” (enquanto característica adquirida ou desenvolvida).

Entendido em diferentes nichos de emprego terminológico, o mote da “qualidade” adquiriu decisiva relevância e transversalidade em todos os domínios da experiência humana, quer ao nível da aferição qualitativa de atos, operações e procedimentos, quer ao nível da dotação qualificativa de aptidões, capacitações e competências, assumindo-se com uma espécie de exigência ubíqua para tudo o que envolve produtos, serviços, processos, sistemas, etc. A qualidade, contudo, não é, como habitualmente se entende, de todo oposta e inconciliável com a dimensão quantitativa, e, num certo sentido, tende mesmo a integrá-la, sem nela necessariamente se diluir. Com efeito, se na indústria, e.g., a qualidade é entendida como conformidade relativa a especificações de produção (implicando requisitos legais e regulatórios), sendo a qualidade dos produtos aferida e garantida por inspeções, testes e mensurações (envolvendo as expectativas dos consumidores), já na saúde a mesma é assumida como promoção de uma vida saudável (em termos preventivos, interventivos e pós-preventivos), assegurada de forma não apenas acessível e fiável, mas também eficaz e eficiente, sendo a qualidade do serviço médico e/ou terapêutico aferida pelos resultados clínicos alcançados e validada através de indicadores de satisfação dos pacientes, ao passo que, na educação, é entendida como sistema de capacitação dos alunos em vista da aquisição de procedimentos, atitudes e conhecimentos essenciais para uma aprendizagem incremental, crítica e contínua, sendo a qualidade do ensino garantida por políticas de acesso a uma escolaridade mínima obrigatória e aferida mediante indicadores baseados quer em taxas de sucesso escolar, quer em índices de qualificação para a empregabilidade.

 

Abordagem categorial e epistemológica

Em termos formais, a noção de qualidade muito dificilmente poderá resistir a uma conceptualização unívoca. A partir da pergunta qual?, Aristóteles expande categorialmente o conceito de qualidade em quatro níveis, ligando-o ou a hábitos comportamentais, disposições virtuosas e estados físicos (Cat., VIII, 8 b 25); ou a uma capacidade ou incapacidade natural para realizar uma determinada função (Ibid., 9-14); ou a uma faculdade afetiva para sentir sensações, paixões e emoções (Ibid., 9-27); ou, enfim, a formas e figurações geométricas (Ibid., 10-10). Já em ambiência moderna, a dimensão qualitativa conhecerá um inicial impulso pela mão do físico-químico e filósofo natural R. Boyle (cf. The Origin of Forms and Qualities, V, 302), sendo, no imediato seguimento deste, filosoficamente retomada e consolidada por J. Locke (cf. Essay Concerning Human Understanding, II, 8) na distinção básica entre “qualidades primárias”, que, por parecerem inerir às coisas independentemente de quem as observa (e.g., tamanho, forma e movimento), prevalecem como propriedades determinantes e fundamentais para o conhecimento científico, e “qualidades secundárias”, que, por parecerem depender da estrutura sensorial do próprio observador (e.g., textura, cor e sabor), se subordinam àquelas a título contingente e subjetivo.

 

Qualidade adstrita e qualidade adquirida

A dimensão qualitativa pode, num acercamento imediato e preliminar, ser abordada sob dois prismas: por um lado, como qualidade “adstrita”, i.e., enquanto expressão de uma marca congénita; por outro, como qualidade “adquirida”, enquanto resultado de um processo cumulativo que entrelaça aprendizagem, treino e experiência. Enquanto das qualidades “adstritas” decorre, pela sua índole inata, um tipo de aptidões (e.g., anatómicas, neurofisiológicas, instintivas, etc.) já intrinsecamente vinculadas, das qualidades “adquiridas”, por seu turno, depende, pela sua índole sobreveniente, um tipo de apetências (e.g., comportamentais, relacionais, criativas, espirituais, etc.) que dependem não apenas de uma ativação consciente, mas também de uma prática continuada. Em ambos os casos, o processo nunca ocorre de forma desfasada ou desconexa, visto que o que permite “qualificar algo como tal” resulta da conjugação de predisposições congénitas e de adaptações evolutivas, com base na qual se forma um conjunto de tendências ou inclinações suscetíveis de serem reforçadas, reajustadas, revertidas ou suprimidas.

A distinção entre qualidades adstritas e adquiridas não se compadece, portanto, com a rigidez de uma definição puramente dicotómica e disjuntiva, tanto mais que os dois planos ocorrem num interface onde a estrutura subjacente (somática, genética e sobretudo neurofisiológica), a exposição ao meio (físico, endémico e sobretudo ambiental) e a inscrição contextual (familiar, social e sobretudo cultural) interagem e retroagem de forma acomodatícia (por correção sucessiva), adaptativa (por estabilização faseada) e gradativa (em complexidade crescente). Esta multímoda confluência de planos não predetermina qualitativamente o que um ser vivo necessariamente “haverá-de-ser”, mas antes o que “poderá-vir-a-tornar-se” no limiar de uma certa margem probabilística, dependendo do respetivo grau de senciência, consciência e livre-arbítrio. São, a esse propósito, múltiplas e heterogéneas as vertentes humanas onde o binómio adstrito/adquirido assume particular relevância crítica, desde o domínio da teorização zoofisiológica e bioetológica do nexo entre instintos e condicionamentos reflexos no reino animal (cf., respetivamente, Ivan Pavlov e Konrad Lorenz) e da sua transposição não só para o campo da psicologia comportamental (designadamente no que concerne ao vínculo entre predisposição e aprendizagem na estruturação comportamental, quer através do mimetismo por “observação‐repetição‐padrão”, quer do condicionamento por “estímulo-resposta-recompensa-reforço”, quer, ainda,  através do looping “tentativa-erro-ajustamento”), bem como para o campo da psicologia do desenvolvimento infantil (ao nível cognitivo, e.g., Jean Piaget; moral, e.g., Lawrence Kholberg; e filosófico, e.g., Matthew Lipman) ou da experiência estética (ao nível da formação do génio criativo na intuitiva díade popular “inspiração‐transpiração”), ou até mesmo do desempenho desportivo (ao nível da tríade “aptidão-treino-melhoramento”), até ao domínio da sociologia (onde, e.g., a questão do carisma se instala como bissetriz política ou organizacional entre o exercício do poder como “dom” natural e a construção da liderança como “aprendizagem” contínua), passando pelo domínio da antropologia, tanto na sua declinação religiosa (no tocante a saber se, e.g., a crença numa realidade transcendente ocorre de forma naturalmente espontânea ou culturalmente induzida), como  também teológica (relativamente, e.g., à tensão entre natureza concedida e graça excedida), sem ignorar igualmente a espiritual (no respeitante, v.g., à desafiante polaridade entre o “a-si-dado” e o “por-si-acrescentado”, tal como se colhe na Parábola dos Talentos, em Mt. 25, 14-30 e Lc 19, 12-27).

 

Aporias no atual debate filosófico entre inatismo/aquisitivismo

O binómio adstrito/adquirido persiste atualmente no debate filosófico que disseca a clivagem inatismo/aquisitivismo, sem que qualquer consenso teórico se vislumbre para as multifacetadas e divergentes teses em jogo, como advertem Paul Griffiths e Stefan Linquist no seu artigo “The distinction between innate and acquired characteristics”: “A distinção entre inato/adquirido não é apenas interessante por si só, mas serve também como um exemplo de como a disciplina de filosofia pode e deve interagir com os campos científicos que investiga. […] Isso suscita uma consideração importante […]: até que ponto <um determinado diagnóstico filosófico> é moldado pelos detalhes particulares do debate científico em que se baseia? […] A distinção entre inato/adquirido aparece em discussões social e eticamente importantes, […] <mesmo quando> o conceito vernacular de inaticidade projeta um essencialismo cientificamente desacreditado sobre as espécies na natureza. […] Uma das razões pelas quais as pessoas continuam a ter confiança na distinção é que elas acreditam que existem especialistas científicos capazes de classificar definitivamente as características como inatas ou adquiridas. Todavia, […] tais classificações são, na realidade, altamente problemáticas e há pouco consenso sobre se elas têm valor científico ou sobre como devem ser elaboradas” (GRIFFITHS e LINQUIST, 2022).

 

Bibliog.: impressa: ARIEW, André, “Innateness”, in MATTHEN, Mohan e STEPHENS, Christopher (eds.), Philosophy of Biology, Amsterdam, Elsevier, 2007, pp. 567-584; ARISTÓTELES, Categorias. Da Interpretação, trad. Ricardo Santos, Lisboa, INCM, 2016; BATESON, Patrick e MAMELI, Matteo, “The innate and the acquired: Useful clusters or a residual distinction from folk biology?”, Developmental Psychobiology, n.º 49, 2007, pp. 818-831; BOYLE, Robert, The Works of Robert Boyle, vol. 5: The Origin of Forms and Qualities (1665-7), ed. Michael Hunter e Edward B. Davis, London, Pickering & Chatto, 1999; BULLER, Mark, Adapting Minds: Evolutionary Psychology and the Persisting Quest for Human Nature, Cambridge, MIT Press, 2006; CARMICHAEL, Leonard, “Heredity and environment: Are they antithetical?”, Journal of Abnormal and Social Psychology, n.º 20, 1925, pp. 245-260; CASSIDY, John, “Half a century on the concepts of innateness and instinct: Survey, synthesis and philosophical implications”, Zeitschrift Für Tierpsychologie, n.º 50, 1979, pp. 364-386; CHEUNG, Benjamin et al., “Am I my genes? Perceived genetic etiology, intrapersonal processes, and health”, Social and Personality Psychology Compass, vol. 8, n.º 11, 2014, pp. 626-637; COFNAS, Nathan, “Innateness as genetic adaptation: Lorenz Redivivus (and revised)”, Biology & Philosophy, n.º 32, 2017, pp. 559-580; FORD, Donald e LERNER, Richard, Developmental Systems Theory. An Integrative Approach, Newbury Park, Sage, 1992; GERVAIS, Will et al., “The cultural transmission of faith: Why innate intuitions are necessary, but insufficient, to explain religious belief”, Religion, n.º 41, 2011, pp. 389-410; GODFREY-SMITH, Peter et al., Complexity and the Function of Mind in Nature, Cambridge, Cambridge University Press, 1996; GRIFFITHS, Paul, “What is innateness?”, The Monist, vol. 85, n.º 1, 2002, pp. 70-85; HINDE, Robert, “Dichotomies in the study of development”, in THODAY, J. M. e PARKES, A. S. (eds.), Genetic and Environmental Influences on Behaviour, New York, Plenum, 1968, pp. 3-14; KITCHER, Philip, “Battling the undead: How (and how not) to resist genetic determinism”, in SINGH, Rama S. et al. (eds.), Thinking about Evolution: Historical, Philosophical and Political Perspectives (Festchrifft for Richard Lewontin), Cambridge, Cambridge University Press, 2001, pp. 396-414; KOHLBERG, Lawrence, The Psychology of Moral Development: The Nature and Validity of Moral Stages, San Francisco, Harper & Row, 1984; KUO, Zing, “How are our instincts acquired?”, Psychological Review, n.º 29, 1922, pp. 344-365; LALAND, Kevin e BROWN, Gillian, Sense and Nonsense: Evolutionary Perspectives on Human Behaviour, Oxford/New York, Oxford University Press, 2002; LAUDAN, Larry, Progress and Its Problems: Towards a Theory of Scientific Growth, Berkeley, University of California Press, 1977; LIPMAN, Matthew, Philosophy for Children, ed. Terrell Ward Bynam, Oxford, Basil Blackwell, 1976; LOCKE, John, Essay Concerning Human Understanding, ed. Peter H. Nidditch, Oxford, Clarendon Press, 1975; LORENZ, Konrad e LEYHAUSEN, Paul, Motivation of Human and Animal Behavior: An Ethological View, New York/London, Van Nostrand-Reinhold, 1973; MAMELI, Matteo, “Nongenetic selection and nongenetic inheritance”, The British Journal For The Philosophy Of Science, n.º 55, 2004, pp. 35-71; MAYR, Ernst, “Cause and effect in biology”, Science, vol. 134, n.º 3489, 1961, pp. 1501-1506; MEDIN, Douglas e ORTONY, Anthony, “Psychological essentialism”, in VOSNIADOU, Stella e ORTONY, Andrew (eds.), Similarity and Analogical Reasoning, Cambridge, Cambridge University Press, 1989, pp. 175-195; MURRAY, Michael, “Scientific explanations of religion and the justification of religious belief”, in SCHLOSS, Jeffrey e MURRAY, Michael J. (eds.), The Believing Primate, Oxford, Oxford University Press, 2009, pp. 168-178; PAVLOV, Ivan, Conditioned Reflexes. An Investigation of the Physiological Activity of the Cerebral Cortex, London, Oxford University Press, 1927; PIAGET, Jean, The Psychology of the Child, New York, Basic Books, 1972; SCHAFFNER, Kenneth, “Genes, behavior and developmental emergentism: One process, indivisible?”, Philosophy of Science, vol. 65, n.º 2, 1998, pp. 209-252; SCHNEIRLA, Theodore e ROSENBLATT, Jay, “‘Critical periods’ in the development of behavior”, Science, n.º 139, 1963, pp. 1110-1115; SHEA, Nicholas, “Genetic representation explains the cluster of innateness-related properties”, Mind & Language, n.º 27, 2012, pp. 466-493; SLONE, Jason e VAN SLYKE, James, The Attraction of Religion: A New Evolutionary Psychology of Religion, London, Bloomsbury Academic, 2015; TOMKINS, Silvan, Affect, Imagery and Consciousness, New York, Springer, 1962; VAN EYGHEN, Hans et al., “The cognitive science of religion, philosophy and theology: A survey of the issues”, in VAN EYGHEN, Hans et al (eds.), New Developments in the Cognitive Science of Religion: The Rationality of Religious Belief, Dordrecht, Springer, 2018, pp. 1-14; WEINBERG, Jonathon e MALLON, Ron, “Living with innateness (and environmental dependence too)”, Philosophical Psychology, vol. 21, n.º 3, 2008, pp. 415-424; WEST-EBERHARD, Mary, Developmental Plasticity and Evolution, Oxford, Oxford University Press, 2003; WILKINS, John e GRIFFITHS, Paul, “Evolutionary debunking arguments in three domains: fact, value, and religion”, in DAWES, Gregory e MACLAURIN, James (eds.),  A New Science of Religion, London, Routledge, 2013, pp. 133-146; digital: GRIFFITHS, Paul e LINQUIST, Stefan, “The distinction between innate and acquired characteristics”, in ZALTA, Edward N. (ed.), The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Spring 2022: https://plato.stanford.edu/archives/spr2022/entries/innate-acquired (acedido a 20.02.2023).

 

António Amaral

Autor

Scroll to Top