Do grego antigo rhétoriké, a arte da retórica ou eloquência.
Desconsidera-se usualmente o termo “retórica” por se associar a uma artificialidade da linguagem, a algo forçado, sem âmago, empolado. No entanto, é omnipresente em toda a vida cultural do Ocidente, tendo sido nuclear na formação dos cidadãos grego e romano e do discente do trivium nas universidades medievais.
A retórica é, desde a Antiguidade, considerada a arte de persuadir. No seu sentido lato, é entendida como a arte do discurso em geral, e, em sentido estrito, como “a arte do discurso em que se defende uma parte” (LAUSBERG, 2011, 75). A sua origem remonta ao séc. v a.C. e está ligada ao surgimento dos sofistas na sociedade ateniense. Os sécs. v e iv a.C correspondem à “primeira sofística”, com uma forte componente teórico-prática, e os seus representantes foram, entre outros, Protágoras e Górgias, que deram o nome a duas obras de Platão. A “segunda sofística” corresponde aos sécs. ii e iii d.C., acontece em Roma e centra-se no cultivo da sabedoria como retórica e literatura.
Contextualmente, a retórica teve a sua origem em disputas jurídicas, tendo sido uma linguagem essencialmente técnica e de resolução de problemas relacionados com direitos de propriedade. Ou seja, é um tipo de discurso jurídico e deliberativo, ao qual, mais tarde, Aristóteles junta o género epidíctico. Contudo, já a partir desta altura, é “um sistema elaborado de formas de pensamento e de linguagem, as quais podem servir à finalidade de quem discursa para obter, em determinada situação, o efeito que pretende” (Ibid., 75). A retórica implicava, além do domínio do discurso, capacidade performativa: havia um tom dramático e uma teatralidade inerentes ao ofício de discursar em público. É por este motivo que a retórica é desdenhada por Platão, que a considera uma técnica discursiva para mover multidões, não uma ferramenta útil ao pensamento filosófico.
A Retórica, de Aristóteles, é o primeiro tratado filosófico que institucionaliza a retórica. Aristóteles define-a em contraposição com a dialética: a primeira é indutiva, e a segunda dedutiva. Ambas se baseiam na argumentação e na persuasão, porém, a retórica diz respeito à peroração, ao discurso, enquanto a dialética alude à discussão, ao diálogo. É com Aristóteles que compreendemos que a retórica é, desde o princípio, uma técnica global, primária e plástica, sustentando-se no logos (“palavra”, “discurso”), ethos (“carácter”) e pathos (“emoção”). É global porque engloba todas as áreas do conhecimento humano, primária porque está na base de todos os tipos de discurso, e plástica porque parte da consciência de quem fala, formulando-se como ato de linguagem, para depois se transformar na perceção do outro como imagem, metáfora, símbolo ou motivo que seja fonte de potenciação de sentidos, quer numa dimensão oral, quer textual e hermenêutica.
Cícero desenvolve a retórica como bene dicendi scientia, ou “a ciência de bem falar”, sustentada na ideia de bona fides, ou “boa-fé”, conceito-chave que estrutura toda a sua reflexão. Tendo aprendido com os Gregos o valor da retórica, esta toma um lugar cimeiro como parte do ensinamento mental e intelectual que faltava à formação bélica romana. Aprender retórica equivaleria ao domínio absoluto da eloquência como arte da palavra, o “falar bem”, pois era esta uma das principais componentes para se conseguir instituir uma ordem que dirimisse a conflitualidade entre os vários povos que estavam sob o domínio romano. Na Antiga Roma, a retórica tinha um propósito mais pragmático do que teórico, pois passa a revestir-se de uma natureza puramente utilitária. O bem-dizer não se resumia à expressão linguística, ao dizer, mas a tudo aquilo que sustenta esse dizer: o ethos, um pensamento claro e um conhecimento vasto e profundo. Falar bem era um dever de cidadania. Apesar de Cícero marcar outra viragem nas considerações sobre a retórica, pertence, todavia, ao mesmo período de Aristóteles. Foi este o tempo, segundo Todorov, dos “retóricos felizes”, os que admiravam a retórica como fonte de todos os discursos. Após este primeiro período, surge a primeira crise de descredibilização da retórica, da qual o historiador romano Tácito foi o primeiro a dar conta, em Diálogo dos Oradores. As teorias platónico-aristotélicas podem, aliás, ser vistas como premonições dessas crises.
O segundo período inicia-se com Quintiliano. A sua obra Institutio Oratoria tem um valor fundacional: trata-se de um manual didático sobre como bem discursar, bem ensinar e bem aprender. Quintiliano faz o “corte do facto retórico”, ou seja, acentua a divisão entre pensamento/coisas (res) e palavras (verba), uma divisão antitética que se relaciona com as funções do discurso – a invenção é atribuída aos pensamentos, e a elocução às palavras. Assim, o instruir e sensibilizar dependem da invenção (inventio), disposição (dispositio) e memória (memoria), e o agradar depende apenas da elocução. É, aliás, nesta oposição que se baseia a teoria dos três estilos: o estilo simples, docere, para instruir ou julgar; o médio, movere, para agradar (convencer, emocionar); e o elevado, delectare, para sensibilizar (no teatro, epopeia). Até então, tanto Aristóteles como Platão e Cícero compreendiam a retórica como uma disciplina argumentativa, técnica. Quintiliano, a partir daqueles, estabelece cinco cânones retóricos como estrutura de composição de um discurso – inventio, dispositio, memoria, pronuntiatio e elocutio – e elabora a primeira história crítica da retórica, procurando torná-la adaptável a todas as áreas do conhecimento, sem a coartar à prática jurídica e administrativa, inserindo-a nos géneros atribuídos ao discurso naquela época (e que, em certa medida, se mantiveram como as bases dos estudos narratológicos na literatura): o jurídico, o deliberativo e o epidíctico.
Três séculos mais tarde, S.to Agostinho revela uma nova transformação para a retórica, desta vez associada à palavra bíblica: a retórica torna-se hermenêutica. O princípio consciente é de que a total revelação da mensagem nem sempre é benigna, uma vez que a dissimulação das verdades divinas é que incita à procura ativa dos significados latentes e misteriosos em cada palavra. Em Cidade de Deus, S.to Agostinho analisa episódios da vida romana e trechos da retórica de Cícero, intercalados com mandamentos cristãos, para tentar desvendar a verdadeira substância da palavra, resultando em ensaios retóricos de aturada reflexão. A retórica clássica é lida à luz da espiritualidade e dos preceitos bíblicos e teológicos.
Pensadores quinhentistas, como Erasmo de Roterdão e Damião de Goes, recorrem às fontes gregas e latinas não só como parte da sua formação, mas também para, a partir delas, restituírem o antropocentrismo como nova perspetiva fenomenológica. O P.e António Vieira cita Aristóteles nos seus sermões, servindo-se de lições de retórica em diversos momentos da sua obra. Ainda no séc. xvii, René Descartes, com Discurso do Método (1637), e, depois, no séc. xviii, Immanuel Kant, com Crítica da Razão Pura (1781), representam os primeiros filósofos da era moderna. Porém, a retórica é ainda utilizada como mera ferramenta descritiva. Maria Helena da Rocha Pereira refere como a receção de Aristóteles influenciou a própria noção de retórica, aduzindo que “a reinterpretação da retórica está muito ligada ao florescimento do barroco” (PEREIRA, I, 2005, 390) e que, nos tempos da Reforma Pombalina, se aclama de novo Horácio, Cícero e Quintiliano como fontes mais puras da sabedoria clássica, enquanto o Estagirita é visto como “nume tutelar da estética barroca” (Ibid., 391).
No fim do séc. xix, a retórica começa a reconquistar o seu lugar nos estudos de cultura e de linguagem, graças a Hegel e, mais tarde, a Nietzsche. O primeiro foi responsável por recuperar o pensamento dos sofistas, resgatando-os do desprezo a que tinham sido votados por Platão e sucessores, mas foi o segundo quem mais divulgou a retórica e a revitalizou. O seu Curso sobre a Retórica, na Universidade de Basileia, entre 1872 e1874, não se limitava a narrar o surgimento e desenvolvimento da disciplina ao longo dos séculos, pois, além disso, Nietzsche havia incorporado uma visão crítica e filosófica acerca da naturalidade da linguagem e de como a arte contém sempre retórica.
É no séc. xx que a retórica capta definitivamente a atenção de filólogos e linguistas, havendo quem autentique o seu ressurgimento, como é o caso de Maurice Blanchot, Renato Barilli, Chaïm Perelman, Roland Barthes e Tzvetan Todorov. Por outro lado, autores e pensadores como Gérard Genette, Roman Jakobson e Boris Eikhenbaum valorizam apenas a metáfora e a metonímia como último vestígio da retórica. Esta resiste, porém, como elemento e conceito discursivo no formalismo russo, no New Criticism, no estruturalismo, na psicanálise, na filosofia analítica e na teoria da argumentação. Perelman, filósofo de direito, com Traité de l’Argumentation – La Nouvelle Rhetorique (1958), escrito com Lucie Olbrechts-Tyteca, releva a argumentação como a maior dimensão da retórica e dá origem à nova retórica e à filosofia regressiva. Perelman defendia que, para se conseguir um bom discurso argumentativo, haveria que incluir os juízos de valor de quem o perorava, o que, apesar de parecer particularizar o discurso, o torna, na verdade, mais humanamente credível. Também Paul De Man estuda alguns aspetos figurativos da linguagem literária, centrando-se no valor da referência como ponto de ligação entre retórica e literatura, considerando o formalismo literário redutor no seu alcance analítico, uma vez que a excessiva atenção à forma enquanto valor acrescido do significado fez com que houvesse uma desconexão com a referencialidade interna da linguagem.
Mais tarde, já no fim do séc. xx, Antonio García Berrio e Tomás Albaladejo retomam também esta perspetiva. Assiste-se, portanto, a um renascimento dos estudos de retórica que não se circunscreve aos estudos de cultura clássica, de filosofia da argumentação ou de história das ideias – também as áreas da linguística e da literatura iniciaram a adoção de uma metodologia baseada nas técnicas e noções de retórica, primeiro impulsionada pelo estruturalismo e, mais recentemente, em Espanha, pela rhetorica recepta de Tomás Albaladejo, e pela retórica textual geral de García Berrio (incluídas na neorretórica).
É na Alemanha, porém, que a retórica tem vicejado, com Josef Kopperschmidt, Joachim Knape e, mais recentemente, Peter Österreich e o homo rhetoricus, conceito que agrega a noção de jogo, memória e ironia. Esta revitalização da retórica considera a persuasão como ponto de partida para o estudo dos diferentes estágios da comunicação: a primária, destacada pelo texto oral; a secundária, no sentido em que esse texto se articula à presença do orador; a terciária, porquanto a retórica se reduziria a um sistema semiótico – o texto escrito. A retórica viu-se, assim, praticamente reduzida à sua base de comunicação terciária, apenas existindo no texto escrito, na sua recursividade mais expressiva.
Surgem, então, inúmeras possibilidades para compensar a ausência do orador e a performance inerente ao ato de dizer um discurso como faziam os antigos, i.e., a imaginação, a fantasia, a emoção e a componente visual. Consequentemente, a teoria da retórica teve de se envolver em novas dimensões (multimédia, publicidade, etc.). Para tal, e a partir das teorias de Carl Hovland em 1960, Joachim Knape examina duas vias no discurso retórico: a primeira, a chamada agonismus, referente ao discurso deliberativo, reivindicativo, de teor social, político e jurídico, no contexto de uma discussão, no qual uma das partes sairá em vantagem; e a segunda, a que chama semiotischen multidimensionalismus, ou as múltiplas dimensões semióticas, que engloba a persuasão como um dos meios, e não o único ou o principal, de que a retórica se serve. Assim, quando falamos de retórica, extraindo-lhe o sentido pejorativo, falamos de todas as formas de dizer constantes no texto jurídico, político, publicitário e literário, entre outros. E não reservamos essa retórica ao estilo, à metáfora, à imagem, mas ao plano discursivo, à voz, à mensagem e à humanização do discurso, como nos diz Maria Lúcia Lepecki: “a retórica é o lugar onde em primeira instância se expressa a humanidade do homem” (LEPECKI, 2004, 15).
Emerge, de facto, uma revitalização da disciplina como novo quadro epistemológico de resposta aos desafios dos sécs. xx e xxi, talvez no mesmo sentido em que Michel Meyer afirma que “A retórica renasce sempre que as ideologias se desmoronam” (MEYER, 2007, 11). A retórica clássica é revisitada com o intuito de a transformar e transcender, numa perspetiva de reconstrução das humanidades. A retórica deixa de ser artificial para passar a ser a base epistemológica de todo o pensamento. Como, na verdade, sempre foi.
Bibliog.: ARISTÓTELES, Retórica, trad. Manuel Alexandre Júnior et al., Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005; BARTHES, Roland, A Aventura Semiológica, trad. Maria de Santa Cruz, Lisboa, Edições 70, 1987; CICERÓN, Sobre el Orador, trad. José Javier Iso, Madrid, Editorial Gredos, 2002; FIX, Ulla et al. (eds.), Rhetorik und Stylistics: Ein Internationales Handbuch Historischer und Systematischer Forschung/Rhetoric and Stylistics: An International Handbook on Historical and Systematic Research, Berlim, Walter de Gruyter, 2008; LAUSBERG, Heinrich, Elementos de Retórica Literária, trad. R. M. Rosado Fernandes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2011; LEPECKI, Maria Lúcia, Uma Questão de Ouvido – Ensaios de Retórica e de Interpretação Literária, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2004; MEYER, Michael, Questões de Retórica – Linguagem, Razão e Sedução, trad. António Hall, Lisboa, Edições 70, 2007; PEREIRA, Maria Helena da Rocha, “Aristóteles”, in BERNARDES, José Augusto Cardoso et al (dir.), BIBLOS – Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. i, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1995, pp. 387-392; QUINTILIANO, Intitutio Oratoria. Livros I e II, trad. Rosalina Marques e António Leite Marques, Lisboa, Traduvárius Editores, 2011; TODOROV, Tzvetan, Teorias do Símbolo, trad. Maria de Santa Cruz, Lisboa, Edições 70, 2018.
Eduarda Barata