Antes da física newtoniana, cria-se que o mesmo corpo podia ocupar dois espaços ao mesmo tempo. Era o que relatavam as hagiografias e os relatos espirituais. O padrão, obviamente, estava no Cristo ressuscitado, que podia atravessar paredes e manifestar-se tanto em corpo quanto em espírito (Jo 20, 19-31).
O sacramento da eucaristia apresenta este aspeto sobrenatural, uma vez que se trata da carne e do sangue de Cristo manifestos em diversos lugares no mundo, simultaneamente. Ao refletir sobre o mistério de inserir Deus no estômago, o jesuíta Giambattista Sangiure escrevia, no séc. xviii: “Oh soberana e incompreensível Majestade, é muito possível que, ainda que estejas no céu, eu te possa ver em meu estômago, onde Tu vieste morar depois de obrar tantos milagres e de haver alterado, para vir, todas as leis da natureza” (apud CAMPORESI, 1990, 238).
O milagre da transmutação espiritual ficou famoso na vida de Santo António de Lisboa, que enquanto estava em Pádua, em Itália, ao saber das dificuldades de seu pai, surgiu no tribunal de justiça, em Portugal, para realizar a sua defesa. As viagens espirituais estudadas por Ginzburg (2012), semelhantemente, apresentam uma espécie de ubiquidade, pois as pessoas estariam simultaneamente nos rituais campestres e nos seus lares dormindo.
Hoje, o termo “ubiquidade” é utilizado pelos media digitais, que simulam a presença através da holografia. Os estudos sobre a mediatização das celebrações religiosas aproximam a espiritualidade contemporânea dessa topologia sagrada (CHEONG, 2020).
Bibliog.: CAMPORESI, Piero, “La hóstia consagrada: Un maravilloso excesso”, in FEHER, Michel et al. (eds.), Fragmentos para Una Historia del Cuerpo Humano, vol. 1, Madrid, Taurus Editora, 1990, pp. 226-245; CHEONG, Pauline Hope, “Religion, robots and rectitude: Communicative affordances for spiritual knowledge and community”, Applied Artificial Intelligence, vol. 34, n.º 5, 2020, pp. 412–431; GINZBURG, Carlo, História Noturna, São Paulo, Companhia das Letras, 2012.
Eduardo Gusmão de Quadros