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Unidade

A multiplicidade não é antagónica à unidade, mas pode ser dela a sua própria derivação. Nesse caso, naquilo que é uno repousa a potência do que pode vir a ser múltiplo, variado. O entendimento dessas duas formulações é um passo fundamental para a compreensão de que o problema da Unidade também nos leva à multiplicidade. Nos campos da mística e da metafísica, estas questões, que mereceram a atenção de diversos pensadores – de Pitágoras a S. Tomás de Aquino, de Aristóteles a Bergson –, envolvem ainda um outro conjunto de questões, ligadas à própria natureza do ser. Foi o filósofo neoescolástico Étinne Gilson quem parece ter melhor sintetizado essa passagem entre o uno, o múltiplo e o ser. Escrevendo sobre as Enéadas, de Plotino, Gilson afirma que se podemos dizer de cada coisa que ela “é”, é graças à Unidade e também ao idêntico. Afinal, deve-se ao Uno a unificação da multiplicidade da qual tudo é feito. E se existe alguma multiplicidade que não pode ser unificada, esse algo é o próprio “Uno”, o princípio de toda a unidade e, portanto, de todo o ser. Nessa metafísica geradora do ser, o Uno também é uma condição para a inteligibilidade de tudo o que “é”.

No cristianismo, o problema da unidade remete diretamente para as formulações de S. Tomás de Aquino sobre o mistério do “Deus uno e trino”. O Doutor Angélico articula dois conjuntos de questões teológicas que atravessaram os debates da Igreja ao longo dos séculos: 1) os entes da Santíssima Trindade compartilham de uma mesma essência divina ou são géneros derivativos de uma essência original? Noutras palavras, a Trindade é una ou seria uma derivação divina do Uno?; 2) se a Trindade for também o Uno, como pode ser formada por um Pai que gerou um Filho, i.e., por duas entidades aparentemente desiguais naquilo que podem, cabendo à primeira gerar e à segunda ser gerada? As respostas de Aquino a estas questões repercutem de modo duradouro na filosofia ocidental, alcançando a própria formulação racionalista de Leibniz sobre a mónada. Para S. Tomás, ainda que o Pai possa gerar e o Filho não, isso não significa que o primeiro goze de uma potência que o segundo não tem. Trata-se de uma mesma potência, porque a potência é indivisa, absoluta. Entre gerar e ser gerado não há, portanto, uma diferença em si, mas sim uma diversidade a partir da qual Deus se relaciona e se comunica. Na Trindade há uma única potência, na verdade, a única potência a partir da qual tudo o resto é possível.

Para Leibniz, a mónada também carrega a multiplicidade do mundo; ela supõe a descontinuidade dos elementos e a homogeneidade do seu ser. Tudo parte de um Uno infinitesimal, e tudo a ele retorna; nada aparece subitamente na esfera do finito, i.e., do múltiplo, nem nela se extingue. Isto porque o fenómeno (a multiplicidade) não é o todo do ser (a Unidade), nem é uma parte dele, mas é sempre a ele relativo.

 

Bibliog.: LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, Leibniz: Philosophical Essays, Indiana, Hackett Publishing, 2015; SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, vols. 1-3, São Paulo, Loyola, 2001.

 

Rodrigo Toniol

Autor

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