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Valor

Valor é tudo aquilo que faz o objeto de uma atitude de adesão ou de recusa, ou ainda de um juízo crítico. O valor faz parte da vida humana, em tudo se manifesta, sob a forma do desejo, da aspiração e da escolha, na satisfação de necessidades e na realização de ideias e ideais. Está presente em muitas expressões que usamos habitualmente no nosso quotidiano, como “importância”, “preço”, “utilidade”, “mérito”, “coragem”, “talento”, “validade”, “interesse”, etc. A orientação mais profunda da consciência ocidental é afirmada e hierarquizada a partir do valor ou bem universal do ser/Deus e realiza-se na busca dos bens transcendentais da verdade, do bem e do belo, na dependência direta da filosofia grega e da doutrina cristã. Na prática, a vida é tecida de valores, desde os sensíveis (valores hedónicos, vitais e de utilidade) aos espirituais (valores lógicos, éticos, estéticos e religiosos), e é sempre exigida uma avaliação pela consciência, antes da opção de aceitação ou de rejeição. A comunicação humana é, fundamentalmente, uma partilha de valores.

Com o advento da Idade Moderna e do império da subjetividade, o fundamento ontoteológico dos valores é posto em causa e o critério da facticidade e da utilidade prática passa a ser determinante da importância que lhe é atribuída. O uso técnico da noção de valor surge primeiramente na economia política, acentuando a sua dimensão naturalista/materialista e o seu carácter relativista: “A filosofia dos valores abrange uma corrente de pensamento particular, que se desenvolveu entre os meados do século xix e os do século xx. Nascida no clima do pensamento do utilitarismo anglo-saxónico, atribui-se a tarefa de fundar a ética sobre uma economia da vida” (RESWEBER, 2002). Na segunda metade do séc. xix, os “mestres da suspeita” (Marx, Nietzsche e Freud) desenvolvem e dão maior conhecimento dessa interpretação crítica em domínios fundamentais da vida e do pensamento: economia/trabalho, cultura, sentimento/desejo.

Em oposição a essa interpretação, em finais do mesmo século e no seguinte surgem outras correntes dentro da filosofia dos valores, em particular a personalista e a espiritualista, que retomam os grandes princípios da metafísica tradicional, identificando a presença dos valores e a sua fundamentação ontológica desde a antiga filosofia grega, onde sobressai o princípio platónico da ideia do bem como valor supremo. Nelas se integra a “teoria geral do valor”, ou axiologia, que estabelece a ligação das vertentes da ética e da metafísica. Entre as diversas correntes, associadas à fenomenologia, que deram corpo a uma visão espiritualista dos valores que teve grande influência na filosofia contemporânea, podemos destacar alguns dos nomes mais significativos, como Rudolf Lotze, Max Scheler, Nicolai Hartmann, Maurice Blondel, Emmanuel Mounier, Louis Lavelle, René Le Senne, Johannes Hessen.

O espírito é o valor ou princípio imaterial das funções superiores do ser humano, entre as quais a experiência religiosa, e o sagrado constitui o valor supremo. Na “experiência do sagrado”, o eu-religioso descobre-se nos limites da sua condição humana, e na relação com a transcendência encontra novos valores que se expõem em discursos e práticas, com uma malha protetora de proibições, rituais e narrativas, tecidas ao longo de séculos e de milénios. É esta vida do espírito no ser humano que constitui a realidade espiritual como seu caracterizante específico, e é dela que dimanam naturalmente, ao longo da História, as mais variadas correntes de espiritualidade. A riqueza incalculável da produção literária inspirada nesta espiritualidade aí está, disponível para todas as situações e vivências humanas, desde as mais comuns da vida individual e comunitária até às mais profundas e quase inexprimíveis da união mística com o divino. Podemos destacar, entre a multiplicidade inumerável de exemplos, os escritos de S.ta Teresa de Ávila, de S. João da Cruz e de S. Inácio de Loiola.

Os valores determinantes na sociedade de hoje, como expressão da autenticidade e da coerência da vivência religiosa, são-nos lembrados e recomendados, e.g., com a autoridade e o exemplo da ação carismática do Papa Francisco. Estão expostos nos textos notáveis das suas cartas encíclicas Laudato Si (2015) e Fratelli Tutti (2020). Cuidar da nossa “casa comum” e do “próximo” é a grande causa. Primeiro, a “casa comum”: perante o problema ecológico e a crise das alterações climáticas, é urgente promover a ecologia integral como novo paradigma de justiça; mais importante ainda, é necessário prepará-la com a “educação e espiritualidade ecológicas” que nos conduzam à vivência interior, de coração, da conversão ecológica. E depois, o “próximo”, aquele que habita a “casa comum”, com a renovada parábola do samaritano: deixarmo-nos guiar e comover pela expressão veemente e amorosa de “um novo sonho de fraternidade e de amizade social”, o “desafio de sonhar e pensar uma humanidade diferente”, como lemos na última encíclica. A “espiritualidade de fraternidade” deve ser a base imprescindível dessa humanidade, com o apelo aberto e destemido à contribuição da fé e do espiritualismo de todos e de todas as religiões. Ninguém fica de fora.

 

Bibliog.: BARATA-MOURA, José, Para Uma Crítica da “Filosofia dos Valores”, Lisboa, Livros Horizonte, 1982; FRAGA, Gustavo de, “Valor” e “Valores (Filosofia dos)”, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 5, Lisboa, Verbo, 1992, pp. 391-400; HESSEN, Johannes, Filosofia dos Valores, 2.ª ed., Coimbra, Arménio Amado, 1953; RENAUD, Isabel Carmelo Rosa, “Axiologia”, in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, vol. 1, Lisboa, Verbo, 1989, pp. 558-563; RESWEBER, Jean-Paul, A Filosofia dos Valores, Coimbra, Almedina, 2002; SILVA, Lúcio Craveiro da, “Filosofia dos valores e tomismo”, in Ensaios de Filosofia e Cultura Portuguesa, Braga, Faculdade de Filosofia, 1994, pp. 301-306.

 

José Gonçalves Gama

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