A helenização corresponde à incorporação de elementos de origem grega noutras culturas e civilizações. Este movimento teve maior impacto no Médio Oriente e na Ásia Central, caracterizando-se pela articulação criada entre marcas culturais gregas (inclusive linguísticas) e aquelas que eram originalmente próprias dessas culturas, pelos anos 300 a.C., mormente durante o reinado de Alexandre, o Grande (336 a.C.-323 a.C.). Por esta altura, o judaísmo vê-se, por um lado, confrontado com os desafios religiosos resultantes da cultura politeísta grega; por outro, a civilização helénica não pode ser ignorada, uma vez que se impõem, cada vez mais, as suas correntes filosóficas, que levam ao questionamento do próprio modo de pensar judaico, e dado que o modo de viver dos gregos passa a tornar-se algo habitual entre os judeus, à medida que estes se foram fixando cada vez mais próximo das sociedades judaicas (cf. Koliopoulos, 2002).
Quando surge o cristianismo (época de Jesus Cristo e dos escritos neotestamentários), esta mistura de culturas e a maneira como o mundo helénico se afirmou entre os judeus são absolutamente claras. Consequentemente, a comunidade primitiva de Jerusalém desenvolve os princípios doutrinais e espirituais do cristianismo a partir desta relação helénico-judaica (cf. GITTON, 1998). Sem dúvida, o livro dos Atos dos Apóstolos é um bom exemplo desta realidade. Aí se descreve a vida e a compreensão do cristianismo nascente entre os judeo-cristãos de cultura grega (cf. At 6-8), assim como se apresenta a forma como a evangelização cristã assume contornos helénicos na sua difusão (cf. At 13-19). Não é por acaso que a marca da universalidade e a missionação cristã têm, na sua origem, grandes figuras cuja proveniência se encontra na cultura própria do Oriente helénico. Nomes como os do protomártir Estêvão, Barnabé, Filipe e Apolo de Alexandria estão, precisamente, nesta abertura à missão rumo aos pagãos que residiam fora das fronteiras de Israel e do contexto especificamente judaico.
Também ao nível da vivência religiosa, o cristianismo mantém a sua relação com a cultura helénica. Os escritores cristãos dos primeiros séculos atacam e argumentam contra o paganismo religioso, as formas de culto (muitas delas sangrentas e que atentavam contra a vida e a dignidade humanas) e a forma como a própria imagem de Deus era concebida, devido ao politeísmo reinante. Para o fazerem, estes autores (tais como Justino, Taciano, Atenágoras de Atenas, Teófilo de Antioquia, Clemente de Alexandria) fazem recurso aos grandes filósofos gregos, estabelecendo o diálogo religioso a partir de uma linguagem filosófica e não tanto associada ao ritualismo religioso próprio das sociedades da época (cf. BEATRICE, 1997).
Assim, a helenização do cristianismo conduz a novas formas de espiritualidade que se distinguem daquelas que eram mais comuns nas religiões antigas e que, desde os primeiros séculos cristãos, viviam sob a marca do ritualismo, dos preceitos e das normas estabelecidas.
A espiritualidade e a mística cristãs apresentam-se, na sua origem, com as marcas judaicas (um judaísmo já helenizado), mas também com as de uma vivência religiosa própria do mundo helénico. Esta herança cultural não pôde ser ignorada, nem seria possível pensar-se que a conversão ao cristianismo apagaria todo o passado e toda a vivência cultural dos que agora professavam a fé em Jesus Cristo. Neste sentido, a espiritualidade e a mística cristãs surgem, incontornavelmente, ligadas à cultura helénica, seja por adesão a alguns dos seus princípios, seja pela recusa de outros. De facto, se, por um lado, a língua e a educação gregas tanto configuravam o cristianismo nascente e a maneira como viviam os crentes (uma espiritualidade que não era dissociada da razão), por outro, a marca helénica, com tudo o que era herança pagã, tornava-se motor de apostasia e de heresias, o que resultava tanto num alimento para as perseguições aos cristãos, como num elemento purificador da própria vivência cristã (a este respeito, vejam-se os exemplos de Ammonius Saccas, de Porfírio de Tiro e do Imperador Juliano).
Pouco a pouco, devido a esta necessidade de purificação do cristianismo relativamente às religiões helénicas, a influência que o helenismo teve no cristianismo primitivo veio a reduzir-se. Sobretudo quando estas correntes helénicas procuravam a equiparação de Cristo às figuras proféticas e magicistas próprias das religiões helénicas (veja-se, e.g., a equiparação que o paganismo procurou estabelecer entre Jesus Cristo e Apolónio de Tiana). Além disso, a própria tradição idolátrica helénica das imagens chocava com uma espiritualidade em que a adoração a Deus deve existir, não diante de imagens, mas em espírito e verdade (cf. Jo 4, 23).
Bibliog.: Beatrice, Pier Franco, “Hellénisme et christianisme aux premiers siècles de notre ère”, Kernos, n.º 10, 1997, pp. 39-56; FLECKER, Eliezer, Scripture Onomatology, Sidney, Wentworth Press, 2019; Gitton, Michel, “Hellénisation du christianisme”, in Lacoste, Jean-Yves, Dictionnaire Critique de Théologie, 1.ª ed., Paris, Presses Universitaires de France, 1998, pp. 524-526; Jong, Lidewijde de, The Archaeology of Death in Roman Syria: Burial, Commemoration, and Empire, Cambridge, Cambridge University Press, 2017; Koliopoulos, John S. e Veremis, Thanos M., Greece: The Modern Sequel. From 1831 to the Present, New York, New York University Press, 2002; Morlet, Sébastien, Christianisme et Philosophie. Les Premières Confrontations (Ier-IVe Siècle), Paris, Le Livre de Poche, 2014; Simon, Marcel e Benoit, André, “Chapitre IV. Éléments juifs et éléments grecs dans le christianisme primitive”, in Benoit, André (éd.), Le Judaïsme et le Christianisme Antique. D’Antiochus Épiphane à Constantin, Paris, Presses Universitaires de France, 1998, pp. 234-257.
Susana Vilas Boas