Utilizada, nos estados democráticos de direito contemporâneos, para identificar a regra geral e abstrata produto da atuação normativa de um órgão de soberania protagonizada, na maioria dos casos, por uma assembleia representativa eleita por sufrágio universal através da qual, em diálogo com as conceções a cada momento dominantes numa sociedade e em resposta aos desafios nela emergentes, vai sendo criado, mantido ou modificado o direito de origem estatal, quase sempre dominante nas sociedades atuais, a expressão “lei” conhece, na cultura jurídica de matriz europeia, uma história secular, plural e controvertida, no âmbito da qual os fenómenos recentes de desencantamento e secularização das mundividências estruturantes das formas de vida características das sociedades laicas não permitem esquecer as dimensões espirituais e místicas subjacentes.
Com efeito, ciclicamente identificada, desde as experiências políticas gregas e romanas, com a vontade de um, de alguns ou de uma maioria, vontade essa ditada por um interesse próprio de quem decide/delibera ou, diversamente, preordenada ao que se afirma ser o interesse público, de todos, a lei, enquanto instrumento político-normativo de governo da convivência humana, cedo foi teorizada e compreendida como uma realidade sujeita a uma outra realidade que lhe é superior, constituindo esta – seja a vontade divina, mais ou menos caprichosa, arbitrária ou racional, seja a expressão algo panteísta de uma natureza ordenada (o cosmos que atuação humana alguma pode perturbar) – padrão e critério de validade da lei humana. É justamente neste carácter condicionado e derivado, tópico discursivo perene da tradição europeia, que pode ser identificada a matriz espiritual e mística da lei. Afinal, ato autenticamente demiúrgico fundador de cidades, civilizações e modos de vida, foi sempre lembrada como instrumento de liberdade ou de tirania, de prudência ou de rigor excessivo, demasiadas vezes de terror e de opróbrio. De um lado, as leis de Sólon, a lei das xii tábuas, as constituições liberais; do outro, as leis de Críton, as leis de Nuremberga, as constituições ditatoriais. Se em diferentes espaços, em diferentes tempos, a lei era uma ou outra, afastando, e por vezes antagonizando, gerações e/ou comunidades, em todas essas experiências a lei era proclamada como revelação da verdade. E a verdade, ainda que natural ou convencional, em qualquer dos casos pouco diáfana, constituiria alfa e ómega da lei. A lei que ficasse aquém da verdade seria uma corrupção de lei, como tal podendo e devendo ser ignorada e combatida.
Com efeito, configurada aristotelicamente no período medieval como ordenação da razão preordenada ao bem comum, ou hodiernamente sujeita a catálogos de direitos, liberdades e garantias – políticos, civis, económicos e sociais – constitucionalmente consagrados na ordem nacional ou resultantes de atos normativos de direito internacional, a lei, enquanto ato de governação humana, foi sobretudo pensada como ordenação ordenada. A lei positiva, a lei posta a valer numa comunidade por atuação do poder político legítimo, porque legitimado nessa mesma comunidade, assumiu assim, na história europeia, o papel de vis directiva, de parâmetro para o livre exercício da razão humana, mais do que a função de vis coactiva, de imposição da punição para um exercício defeituoso dessa mesma razão. Afinal, foi essa a tradição helénica recolhida por Cícero, recebida na patrística, disseminada por Tomás de Aquino: a lei pode ser imposta aos que dela se afastam justamente na medida em que é expressão da natureza humana. Entre as tradições medieval e contemporânea, a experiência da Idade Moderna assistiu às construções tratadísticas dos sistemas de direito natural, concretizando sobre a visão do ser humano como animal social e imbecil, como ser necessariamente dependente de outros seus iguais para uma sobrevivência dignificante e potenciadora da natureza racional comum, uma cartografia pormenorizada das condutas humanas devidas caso a caso, dessa forma possibilitando a feitura de leis para tudo e para todos, erigindo a lei o critério de ação de governantes e governados.
O princípio da legalidade pôde, assim, ser anteposto, em constituições políticas e codificações civis, ao arbítrio e à força de uns e de outros: os governantes são-no nos termos e nos limites da lei; os governados tornados concidadãos respondendo de igual forma perante a lei. De algum modo esquecida, no estertor dos regimes constitucionais oitocentistas de raiz jusracionalista a que tragicamente se assistiu na primeira metade do século xx, a dimensão axiológica da lei como razão última, tanto da sua feitura como da respetiva validade e vigência, assistiu-se, no segundo pós-guerra, e assiste-se hoje, de novo reclamada a Terra como casa comum pertença de todos, à recuperação dessa dimensão espiritual e mística da lei: mudaram-se tempos e vontades, mas perdura a função da lei, ontem na peugada da verdade e do justo por natureza, hoje, na da dignidade da pessoa humana, essa invenção superior do espírito humano, fundo comum a mundividências culturais distintas, critério último para a (inter)ação legítima de todos e de cada um.
Bibliog.: ALBUQUERQUE, Ruy de e ALBUQUERQUE, Martim de, História do Direito Português, vol. i, t. i, 12.ª ed., Lisboa, Pedro Ferreira, 2005; CORDEIRO, António Menezes, Tratado de Direito Civil, vol. i: Introdução, Fontes do Direito, Interpretação da Lei, Aplicação das Leis no Tempo, Doutrina Geral, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2012; FOUTO, Ana Caldeira, “Antijusnaturalismo”, in FRANCO, José Eduardo, Dicionário dos Antis: A Cultura Portuguesa em Negativo, vol. 1, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2018, pp. 1117-1125; HOMEM, António Pedro Barbas, A Lei da Liberdade, vol. i, Cascais, Principia, 2001; MIRANDA, Jorge, Manual de Direito Constitucional, vol. v: Actividade Constitucional do Estado, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2010.
Jorge Silva Santos