A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z

O lugar da espiritualidade e da mística no mundo atual

Carlos A. Moreira Azevedo

A sede de espiritualidade e a beleza profunda da mística sempre subjazem no ser humano, embora na diversidade de expressões e de sensibilidades, seja das épocas históricas, seja do caráter e psicologia de cada pessoa. Existe hoje um extraordinário interesse por este tema para contrariar a rapidez, incapaz de saborear a profundidade inesgotável e delicada do ser humano, e também para preencher o vazio desgastante, impossibilitando de criar uma leitura significativa do presente. Embora a espiritualidade não seja peculiaridade dos cristãos, mas transversal a todos, também aos ateus, enquanto experiência profunda da vida movida por grandes valores, a abordagem que aqui dou preferência parte de uma visão cristã. Aliás, a espiritualidade, que inclui também a mística, é o campo mais vivo da teologia, porque o mais unido ao tempo e à complexidade histórica. A variedade de escolas de espiritualidade revela a profundidade do mistério de Cristo, vivida geralmente por um santo que institucionaliza o próprio carisma na correspondência profética às necessidades e à cultura de uma dada época. Assume linguagem, temas doutrinais e práticas ascéticas adequadas ao momento vivido, ao instante.  Ensina. no dizer poético de Tolentino Mendonça, “a ver em cada fragmento o infinito, a ouvir o marulhar da eternidade em cada som, a tocar o impalpável com os gestos mais simples, a saborear o esplendido banquete daquilo que é frugal e escasso, a inebriar-nos com o odor da flor sempre nova do instante” (p. 48).

O termo espiritualidade, usado a primeira vez por São Jerónimo, indica viver segundo a força e inspiração do Espírito. Geralmente, a espiritualidade inclui três dimensões: a interioridade ou o caminho para a relação consigo; o caminho da relação com o Transcendente e o caminho para os outros (Gamarra). Cada crente tem uma vida espiritual com dinamismos próprios, na variedade de praxes e em percursos concretos. Compreendo a espiritualidade cristã como a atitude central, prática e existencial da relação de cada ser com o único Absoluto, guiados pelo Espírito de Deus, ao estilo de Jesus Cristo. Esta relação transforma a existência tornando-a significativa de sentido, mais plena e feliz.

A mística não a entendo reduzida a fenómenos extraordinários, como êxtases e visões, locuções e levitações, mas na fidelidade ao Novo Testamento, como entrada no mistério, no desígnio salvífico de Deus, no sentido escondido da sua Palavra e na sua total incompreensibilidade. A união com a realidade transcendente de Deus, mais ou menos afetiva, é caminho aberto a todos os crentes. A experiência da iluminação contemplativa ou da união mística são modalidades da nova consciência de cada cristão em Cristo, criados nele, redimidos por ele para ser transformados e glorificados em e com ele (Thomas Merton). Alguns conseguem uma experiência não concetual de transcendência e outros operam uma “mística quotidiana”. A teologia mística até ao século passado era maioritariamente produzida e destinada a monges, religiosas e religiosos com um estilo de vida longe do mundo laical, da vida familiar. Hoje a mística interessa-se pela atividade secular e interroga-se sobre o papel da sexualidade. Estamos no início de uma nova fase na história e a integração e transformação da sexualidade constitui uma questão exigente de sério confronto.

Quando caem os apoios sociais da religião, a espiritualidade cristã não pode manifestar a sua vitalidade através de ajudas exteriores, nem sequer de auxílios de tipo sacramental, mas somente através do encontro imediato do ser humano com Deus. O apelo à experiência pessoal adquire supremacia sobre as mediações e surge como fundamento para uma reflexão teológica atual. A singularidade da verificação subjetiva da fé prescinde do apoio da comunidade e da instituição eclesial. Esta situação corre o risco de uma fragmentação do testemunho cristão, se este não for partilhado para ser reconhecido e confrontado. O acolhimento obediente e criativo da Revelação, partilhado e interpretado pela comunidade torna-se realmente fecundo.

Vive-se, nos últimos decénios, uma busca surpreendente de espaços onde se trate de espiritualidade e de mística. São as primeiras temáticas a serem escolhidas pelos jovens em encontros que oferecem possibilidade de opções múltiplas. Parece confirmar-se a frase do filosofo André Malraux e do teólogo Karl Rahner, segundo os quais o século XXI ou será místico ou não será. A chamada “revolução espiritual”, coincidente com os movimentos de maio de 68 e do pós-Concilio, acontece na grande transformação operada pela secularização que criou autonomia para os campos sociais e para as instituições: ciências, economia, política, família, vida quotidiana. As funções da religião na sociedade tradicional foram derrapando até à indiferença. Mas o efeito enorme desta viragem na relação entre os crentes e as instituições não atingiu, no mesmo grau, a vitalidade da religiosidade popular e a vivacidade de formas de espiritualidade. Iniciou uma fase de diferente sensibilidade espiritual, correspondente às reivindicações de minorias e à reivindicação de uma personalização criadora de novas formas de vivência espiritual, novos estilos de vida.  É preciso conhecer a dimensão interior da secularização na sua extensão, flexibilidade e profundidade. Trata-se de uma característica desta época, com a qual importa dialogar pois aqui se desenha o novo mapa cultural da sociedade e uma nova forma de expressão espiritual. Neste quadro de veloz mudança se deve reconfigurar a proposta que as religiões podem elaborar. No atual contexto cultural e social, como apresentar a questão da espiritualidade e a busca interior que habita o coração humano? O sociólogo alemão Ulrich Beck denominou “metamorfose”, isto é uma nova modalidade de natureza da existência humana, nova forma de estar e pensar o mundo. Há uma pluralidade de posições, de visões do mundo, que convivem com a visão cristã. Alimentam muitas espiritualidades, ligadas na maioria a religiões. Ao lado destas afirmam-se novas vias em rápida difusão menos organizadas e adaptadas aos desejos de cada individuo em busca de bem-estar. Assim cresce a espiritualidade new age, onde cada um encontra o seu caminho pessoal. Desenvolvem-se as que se centram no corpo com práticas de disciplinas psicofísicas yoga de matriz oriental. Dispõem de instrumentos para reconstruir um novo sentido com a transformação do próprio ser e com a oferta de estilo de vida alternativos aos modelos frenéticos.

Há hoje uma recuperação importante da calma para atuar em qualidade. Quem tem a sabedoria de acalmar e parar consegue superar a superficialidade e a corrida permanente. A calma ajuda a olhar os rostos dos outros, admirar a natureza, compreender as notícias e as vicissitudes diárias como sinais reveladores de um Deus que nos acompanha no caminho humano. O frenesim provoca tensões e cansaços e impede o gosto de viver e de alegrar-se com cada impulso para o bem.

A meditação seduz muitos contemporâneos. Pode ir da simples repetição de uma frase, da consciência da respiração, até métodos mais elaborados. Conduzem as pessoas a experimentar um estado de consciência unitiva, permanecendo em silêncio na presença do grande mistério que envolve todo o universo. Ao entrar em estados profundos de consciência há necessidade de guias porque a viagem no mistério que habita o coração de cada ser está plena de perigos e ilusões. Há o risco de perder-se ou cair em impasses.

A estetização da sociedade inclui as aspirações e os projetos espirituais. Existe fascínio por um neo-monaquismo, grandes encontros como as Jornadas Mundiais da Juventude, peregrinações, música e arte, busca de novas emoções que invadem toda a realidade. Este clima não conduz ao eclipse do religioso, mas à valorização de novas experiências e sentimentos, na busca de bens simbólicos religiosos. Estas novas espiritualidades antecipam novas sensibilidades, com ou sem a imagem de Deus, típica das religiões tradicionais. As espiritualidades não religiosas ou pós seculares dão prioridade à emotividade experiencial e à busca personalizada de felicidade dentro do mundo, embora sem prisão aos bens, obtendo serenidade e paz interior, alívio do stress, confiança em si, bem-estar, harmonia do ser humano com a natureza. Ao bem-estar físico e interior (fitness), aos mestres e guias no sistema de coaching, soma-se a espiritualidade digital, o ecologismo, a solidariedade internacional, o ecumenismo e a busca “ana-teistica” (Richard Kearney) ou misticismo ateu. Estas formas de novas espiritualidades são sistemas de sentido que tornam favorável num individuo assumir a própria biografia e desenhar o seu estilo pessoal, ainda que na procura de uma “casa”, que acolha e partilhe a sua experiência.

O horizonte da experiência religiosa começou a merecer uma abordagem própria, em tratados de Teologia espiritual e em cadeiras de faculdades de teologia. O movimento místico de Oitocentos reage ao ativismo e redescobre a necessidade de interioridade, uma vez que a condenação do quietismo, no século XVII, tinha provocado uma relação critica da Igreja com a mística. A primeira cátedra de Teologia ascética e mística data de 1917 no Angelicum (Garrigou-Lagrange) e no ano seguinte na Gregoriana. Nos anos Cinquenta, nascem os institutos de Espiritualidade, datando o Teresianum de 1959, e trazem revistas da especialidade, histórias e dicionários. O clima espiritual do século XXI parece confirmar o desejo de Karl Rahner (1904-1984) de um século místico. Ele mesmo contribuiu teologicamente para uma espiritualidade da incarnação. Na tentativa de desenvolver uma disciplina os estudiosos multiplicam publicações que sirvam de instrumentos. O notável Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique, Paris, 1932-1997, em 24 volumes, constitui uma base atendível e fundamental.  Vários dicionários mais pequenos foram sendo publicados, editadas revistas, reunidos congressos. Multiplicam-se edições de clássicos místicos, em diversas línguas, correspondendo à sede de mercado. Basta recordar, entre outras, os 60 volumes dos Classici della spiritualità occidentale das Edizioni Paoline. A espiritualidade conquista muitos leigos que se tornam assinantes de revistas dedicadas à teologia espiritual. Hoje as novas tecnologias permitem o acesso aos clássicos e existem sítios dedicados a oferecer essa enorme potencialidade. Em 2013, foi fundado o Institute for the Study of Contemporary Spirituality, junto da americana Oblate School of Theology.

Uma corrente feminista valoriza as figuras femininas na história da espiritualidade e muitas mulheres abordam temáticas da espiritualidade e da mística de modo complementar e inovador. Destacam-se nos Estados Unidos Rosemary R. Ruether (1936-) a romena Elisabeth Schüssler Fiorenza (1938-) e Anne Carr (1934-2008). Radicada na experiência de mulheres, a espiritualidade feminista reintegra a corporeidade como valor e a sexualidade como expressão equilibrada do afeto, valoriza a relação com a natureza em visão ambientalista, insiste na participação, na estética, no comunicativo e alegre, privilegia uma relação entre crescimento espiritual, transformação política e construção de justiça social.

As culturas contemporâneas deste início do terceiro milénio assumem, no Ocidente, modalidades de vivência espiritual e de apreço pela mística verdadeiramente plurais. A marca secularizada cresce e será determinante para o futuro próximo. O cansaço de propostas de estilos de vida consumista e hedonista provoca, nos mais livres, a busca de um húmus vital que sacie a sede espiritual. A tradicional teologia escolástica é substituída por uma nova abordagem, capaz de interpretar a busca espiritual contemporânea. Thomas Merton (1915-1968) fez no seu caminho esta passagem, que depois Henri Nouwen (1932-1996) e outros seguiram com coragem e recorrendo a um estilo narrativo que atrai o leitor. Dorothy Day (1897-1980) teve enorme influxo no catolicismo americano e marcou posição nos problemas sociais, como mestra do amor e serviço ativo, unido à renovação interior. A conversão aos valores evangélicos conduziu a pôr de pé vias alternativas de solidariedade com os mais pobres. Madeleine Delbrêl (1904-1964) é figura de referência como presença profética da alegria de viver solidário. A Teologia da libertação sublinhou a necessidade de falar de modo credível de um Deus que ama os pobres e em Cristo libertador encontra força para vencer a injustiça e transformar a sociedade. Esta espiritualidade teve os seus mártires como o arcebispo Óscar Romero.

Muitos nomes significativos na espiritualidade contemporânea se podiam referir. Cito apenas: o canadiano Jean Vanier (1928-2019), fundador da L’Arche (1964) e do movimento Fé e Luz (1971) com Marie-Heléne Mathieu, mestre no modo de enfrentar as pessoas com deficiência; Carlo Maria Martini (1927-2012), jesuíta e arcebispo de Milão, mestre na leitura orante da bíblia. O suíço Hans Urs von Balthasar (1905-1988) traçou uma preciosa síntese da fé cristã que valorizou o sentido da transcendência de Deus e com Adrienne von Speyr (1902-1967), médica casada e mística, constituíram uma fecunda relação espiritual. Hoje é muito lido o beneditino Anselm Grün (1945-). Entre os fundadores de movimentos com marca espiritual cite-se São Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975), Chiara Lubich (1920-2008) e Luigi Giussani (1922-2005).

A espiritualidade cristã muitas vezes parece incapaz de responder, rotinada numa liturgia ritualista, numa doutrina árida, numa devoção afastada da transformação da sociedade, numa moral velha e pouco evangélica. Alguns modelos são hoje impossíveis de propor.

O filósofo canadiano Charles Taylor (Sources of the self; The Making of the Modern Identity (1989) e A Secolar Age (2007) A era secular. Lisboa: Instituto Piaget, 2012), traçou com mestria os ideais da cultura contemporânea, que se podem resumir: autenticidade, vida comum, reflexibilidade, plenitude de vida. Por autenticidade entende-se a coerência entre o interno e externo, a correspondência entre ao parecer e o ser, a expressão vital do que se é realmente, sem hipocrisia e sem conformação às tradições ou às modas. Sendo valor basilar da espiritualidade, importa não o absolutizar sem ter em conta os conteúdos da verdade e da bondade da vida, a fidelidade ao ser mais profundo de cada um, sob risco de ser reduzido a simples expressão das emoções interiores, exibindo-as por vezes sem pudor. Contudo, é valor irrenunciável que põe em causa uma vida cristã reduzida a fórmulas, ritos litúrgicos, normas morais, práticas religiosas, aparato de organizações.

A valorização da vida comum constitui outro elemento da espiritualidade contemporânea. Esta parte da igual dignidade de cada pessoa, independentemente do seu estatuto social ou religioso, e pratica-se na vida quotidiana, acessível a todos, sem recurso a elementos extraordinários: milagres, visões, êxtases, asceses forçadas, fugas do mundo. Cada um, na sua concreta condição de vida, é chamado a ser o mais perfeito possível, na atenção aos últimos, aos mais pobres aos que sofrem. Não se pode amar a Deus sem esta atitude de recíproca fraternidade.

Por reflexibilidade entende-se a capacidade crítica de questionar-se sobre crenças e convicções, escutar e dialogar com outros pontos de vista, com o fim de encontrar a verdade e o bem. A espiritualidade contemporânea é alérgica à monotonia dos discursos, à retórica religiosa das frases feitas, sem confronto com a experiência da vida. Isto quer dizer não se contentar com emoções intimistas, tradições vividas inconscientemente, mas aceitar por à prova a fé, teologicamente fundamentada, qual acolhimento inteligente do dom da revelação centrado em Cristo. Trata-se de uma normal inteligência humana, não científica, antes animada pelo amor, único capaz de abrir o coração às verdades com dimensão existencial. Assim não se cai numa espiritualidade de tipo intelectualista, limitada a elaborar ideias e a problematizar, mas antes a relação essencial com Cristo se purifica das conceções e sentimentos habituais, dos revestimentos culturais, para encontrar a fidelidade ao evangelho na concreta situação histórica.

A plenitude de vida surge hoje como direção e sentido, a partir do pluralismo de posições nas quais cada um se situa. Uma espiritualidade que mortifique a vida ou remande para o além a felicidade será considerada alienante. Um teólogo fascinante e original na defesa da alegria de crer e de viver foi François Varillon (1905-1978). Uma espiritualidade cristã deve compaginar-se com a atenção às múltiplas capacidades do ser humano: da inteligência aos afetos, da corporeidade à gratuidade, da sensibilidade à justiça até à participação no bem comum, da criação artística até a auto-trascendência.

O cristianismo apresenta a novidade de um Deus que se abaixa gratuitamente para o ser humano para o envolver numa relação de amor recíproco, de acolhimento, de diálogo, de solidariedade. O ágape como cuidado dos outros, dedicação desinteressada aos outros, permanece como expressão de profunda e verdadeira humanidade, mesmo na sociedade secularizada. Será a resposta à desumana redução da sociedade a mercado, produtora da “economia de exclusão”, referida pelo Papa Francisco. O olhar de amor com que Deus olha o mundo sabe ver a bondade e beleza de cada criatura e de cada pessoa, capaz de contrapor-se à crescente indiferença perante tragédias do mal.

Buscam-se formas orientalizantes ou laicas, estranhas à tradição cristã e, por vezes, a qualquer pertença religiosa. Ocorrem experiências de sincretismo, resultante de misturas ao gosto individual, ou mesmo de fundamentalismo religioso, indagando uma identidade segura. A sociedade contemporânea assumiu os traços da secularidade, sem uma referência transcendental clara, mas com base no ego, em navegação errante sem meta última, sem luz que indique a rota e marque os limites. Há fadiga seja na busca do que fazer consigo mesmo, seja na leitura de sinais para interpretar bem a vida, ainda que necessitando de um olhar amável que a pessoa confirme no caminho a que se lançou. O serviço do acompanhamento será essencial.

Não se pode esquecer que ao longo dos tempos a espiritualidade cristã sempre encarnou culturalmente, alterando as suas expressões. O contexto cultural, com suas formas de pensamento, de sensibilidade aos valores, de praxis de vida, configurou a vivência e as convicções espirituais. As formas como o Espírito de Jesus Cristo, como o Espírito de amor de Deus animam o ser humano e se derramam no seu coração tornam a pessoa participante da comunhão inefável com o divino e comprometem-na na efusão desse amor na criação. Os crentes seguem o estilo de Jesus, deixam-se animar do mesmo Espírito com sentimentos, comportamentos e ações concretas no terreno atual.

Esta tensão esteve presente na espiritualidade unitiva dos grandes místicos do Ocidente e no sentido teológico da alteridade transcendente de Deus, com quem ocorre ousar o diálogo. Importa o equilíbrio entre a valorização da união afetiva numa conceção do amor (platónica-idealista), que pode deslizar no intimismo subjetivo, e a valorização da alteridade numa conceção personalista-dialógica do amor, também apreciada pela cultura pós-moderna, que pode conduzir a pessoa a fechar-se na imanência ou num humanismo exclusivo sem transcendência. Este alimenta-se da consideração do saber científico como único saber válido, do entendimento meramente instrumental da razão, do predomínio da técnica, sobretudo económico-financeira. Este ambiente favorece a difusão de um individualismo, onde cada um procura uma felicidade emocional, com indiferença pelo outro. Pode chegar ao niilismo com a dissolução de qualquer valor espiritual. Interessa apenas o sucesso pessoal. A cultura pós-moderna, porém, não sabe oferecer recursos interiores para a pessoa se realizar plenamente, porque cortou com as raízes existenciais da reciprocidade das relações. A pessoa deve enfrentar a vida vazia por dentro, reduzida à pressão férrea dos bens de consumo e dos meios tecnológicos, perenemente insatisfeita.

Esta falta de sentido faz emergir uma consciência crítica e cria um forte desejo de espiritualidade. Não se trata de uma espiritualidade de tipo religioso ou confessional. Surgem as grandes perguntas sobre o sentido da vida, da morte, da felicidade e da dor. Acolhe-se a exigência de procurar a justiça e participar na construção de vias que respeitem a dignidade das pessoas, desejam-se relações afetivas gratuitas, gera-se um compromisso em ler a trama do invisível da realidade nas coisas visíveis, aprecia-se a contemplação e a criação da beleza. Esta necessidade de espiritualidade caracteriza-se por alguma confusão e desorientação, por demasiado subjetivista, correndo o risco de queda em experimentalismo emotivo.

A desertificação espiritual provoca em alguns movimentos e indivíduos o desejo nostálgico do passado, o regresso a formas pré-modernas de espiritualidade que unem santidade a milagres físicos, biológicos, psicológicos, fenómenos atmosféricos, curas, luta com demónio, ou a fixação em formas de santidade ligadas a revelações, visões sobrenaturais, ou ainda à atitude sacrifical diante da justiça punitiva de Deus, com mortificação do humano.

Hoje requer-se uma espiritualidade encarnada na realidade, imersa na vida quotidiana e comum, que convida ao prazer de viver, ao dom de si capaz de superar as possibilidades humanas como força do Espírito, na história pessoal e coletiva.

Os âmbitos ordinários da existência são fundamentais e o caráter encarnado da espiritualidade, a sua inserção na história é imprescindível. Mais do que tratados de oração, há uma sede por dar razão, valor, sentido à vida ordinária. Nas situações mais variadas da vida: família, trabalho, sofrimento, opções políticas é possível acolher o Evangelho. A qualidade espiritual da vida normal e quotidiana é obra do Espírito Santo.

Particular desenvolvimento e nova linguagem requer a relação espiritual com o sofrimento, com a dor e as feridas da vida. Resposta inovadora tem dado a dominicana e médica Anne Lécu.

A valorização da espiritualidade conjugal como caminho de santidade ao lado da vida religiosa, ocorrida no pós-concilio e desenvolvida por S. João Paulo II, conduz a uma dimensão vocacional de toda a consagração batismal, seja escolhido o caminho do casamento ou do estado virginal, sem qualquer superioridade ou inferioridade. As experiências de conjugalidade, maternidade, paternidade, filiação, gestação são lugar basilar da vida espiritual. A espiritualidade laical desenvolveu-se, baseada na eclesiologia da comunhão corresponsável que envolve todas na vida interna da Igreja e convida a humanizar cristãmente os meios políticos, económicos e culturais, em fidelidade a uma Igreja instrumento do Reino.

Hoje a espiritualidade e a mística são vistas com respiração intercultural e missionária, com atenção ao diálogo inter-religioso. A espiritualidade do diálogo inter-religioso, no contexto de pluralismo existente, conduz a uma relação positiva e construtiva com outras religiões, caracterizado pela compreensão mútua e respeito pleno, seja para com os individuo seja para com as comunidades. Este comportamento assume uma particular urgência para o futuro da paz e da concórdia no mundo. O amor pelo próximo implica o respeito pela sua fé religiosa, pela identidade de cada experiência, sem implicar relativismo, banalização de doutrinas ou ocultamento de diferenças religiosas. Esta dimensão espiritual precisa de percorrer ainda um caminho, apesar dos contributos de teólogos, como o catalão Raimon Panikkar (1918-2010). A abertura humilde e acolhedora e a relação de amizade e de diálogo permitirão novos horizontes essenciais na história presente. Multiplicar lugares e espaços de encontro entre tradições e sapiências espirituais da humanidade inteira não visa chegar a uma síntese, uma “espiritualidade global”, mas contribuir para um enriquecimento mútuo, portador de luz e exigente de conversão.

O cristão do nosso tempo vive uma espiritualidade ecuménica, pois nenhuma comunidade cristã é autossuficiente, a ponto de não ter necessidade dos carismas das outras igrejas, e a unidade é um valor e um princípio espiritual, antes do doutrinário e dogmático.  A interligação entre experiências religiosas favorecerá o diálogo teológico. A vida interior do cristão ecuménico conduzirá a superar a inércia e a purificar a memória histórica, através do conhecimento e da estima recíprocas entre as diversas confissões. Os escritos de mestres espirituais de outras Igrejas devem alimentar espiritualmente a vida do fiel atual, bem como o contacto direto com a sua liturgia e com as tradições ascéticas e místicas que o enriquecem. A contemplação através de ícones é um exemplo deste processo.

Uma verdadeira solidariedade tem como meta a justiça. Uma espiritualidade cristã conduz à coragem para intervir, encontrando e curando as raízes do mal e removendo as causas da pobreza da população mundial. Implica conseguir o respeito pleno pela dignidade humana, sem se reduzir ao assistencialismo ou a alívio imediato de ajuda de emergência. Carlo Maria Martini defendeu claramente que a justiça é atributo fundamental de Deus e por isso quem cria uma relação espiritual com Deus adota a justiça como dimensão fundamental da vida. Trata-se de um empenho audaz para que todos possam viver em paz. Sem uma alteração dos mecanismos económicos que introduza justiça em todas as fases não se atingirá uma autêntica solidariedade, como afirmou Bento XVI na Caritas in veritate (n. 37). Só uma forte espiritualidade poderá permitir que a justiça entre a fazer parte do modo quotidiano de viver, desde o campo familiar a todas as esferas da vida coletiva. No dizer de São Paulo VI a justiça é a “medida mínima” da caridade, sendo esta que completa e aperfeiçoa a justiça. A misericórdia é a justiça especifica de Deus (W. Kasper). Será traduzida pela espiritualidade em conceder a cada um aquilo que tem necessidade para uma vida digna como criatura de Deus.

Na sociedade atual o valor da paz surge como um imperativo e implica uma espiritualidade de não-violência. Torna-se necessário multiplicar a educação para a paz, com formas concretas e quotidianas de uma espiritualidade que contraste com o ambiente hodierno, onde crescem formas de terrorismo e fundamentalismo e a violência na família assume tons de preocupante futuro. O modelo pacifista de Cristo e o acolhimento de experiências fortes, como a de Gandhi e Lanza del Vasto, Hélder Câmara, Martin Luther King e tantos outros, atestam a possibilidade de uma não-violência ativa, nascida de uma atitude espiritual. Esta contribuirá de modo novo para a solução de conflitos, sustentará a força da justiça e obriga a profunda conversão, pois não pertence aos hábitos comuns. Mitigar os ódios, reconciliar as partes requer uma transformação paciente. Não sendo uma utopia deve enfrentar muitas resistências, que uma sólida espiritualidade cristã ousa construir.

As culturas representam a primeira atividade espiritual do ser humano e contribuem para uma maior humanização e ordem do universo. A secularização e as contaminações socioculturais do nosso tempo requerem uma espiritualidade intercultural. A veste clássica greco-latina não pode encerrar o cristão em expressões culturais do passado, pois a história mostra que as épocas de inculturação fecunda abriram campos de expressão em nova linguagem, riqueza artística, ritos e devoções significativos. A arte concretamente é por natureza espiritual, tem origem na inspiração e recorre a uma universalidade na busca da beleza. Exprime os valores transcendentes do espírito humano. A incarnação do evangelho nas culturas prossegue tarefa sempre em realização.  Cristo não se conhece plenamente sem esta complementaridade de culturas e de expressões. Ainda domina uma visão ocidental e europeia. A Igreja somente será católica e universal quando se libertar de estruturas doutrinárias acidentais, ligadas ao contexto histórico-geográfico, e atender ao essencial, conduzindo a uma nova declinação, a uma espiritualidade intercultural. A vida espiritual do cristão é convocada a encontrar-se com expressões culturais, como arte, música, linguagens, literatura e tradições. A universalidade da instituição é missão espiritual.

Aqui se fundamenta a espiritualidade da missão: levar a incarnação de Cristo à totalidade do tempo e do espaço. Para além da oração e da colaboração na missão, a espiritualidade missionária implica um sentido pleno de evangelização, respeitador dos valores culturais que encontra, escutando as experiências vividas de coração limpo, em plena docilidade ao Espírito Santo. O amor por cada pessoa parte da comunhão íntima com Cristo, em testemunho credível da vontade de salvação universal de Deus Pai. As tantas vidas entregues à missão, ainda que sem frutos visíveis, demonstram fidelidade aos dons recebidos.

A espiritualidade da atividade humana inclui o trabalho, que pode dar ocasião a degradação seja pelas condições da sua prestação seja pela atitude de empenho pessoal. Uma valorização espiritual tem sido proposta. Completa a personalidade humana, apesar de contrariar o gosto pelo ócio, conduz a vivê-lo com honestidade, como participação no bem comum da sociedade, meio de sustento e de possível partilha. Importa oferecer o trabalho quotidiano como ação de colaboração com a obra de realização e aperfeiçoamento da criação.

Uma forma concreta de presença espiritual cristã que tem sido valorizada é a da vida política. Já Giorgio la Pira afirmava que a política é a mais alta das atividades terrenas porque é a organização do mundo e a orientação de toda a vida do ser humano. A dificuldade de manter um comportamento ético e justo, no estrito respeito pelos direitos humanos e serviço do bem comum, na atenção aos mais pobres e desfavorecidos; o difícil caminho do sentido crítico e a consciência dos limites do partido, afasta muitos do exercício de uma atividade política. Quem mantém uma fé profunda e a fidelidade à oração terá confiança para lutar e manter-se acima da ideologia, na variedade de partidos em sintonia com valores essenciais anunciados por Cristo. Para todos os cristãos a atenção ao bem comum exige uma implicação política, ainda que para alguns sem um empenho direto. A indiferença dos crentes não será coerente com a comunhão com Deus que quer a felicidade e o bem da sociedade. Se a Igreja não se identifica com nenhuma estrutura política histórica, acompanha os fiéis na dedicação à organização mais humana e fraterna das nações e das relações internacionais. Cuidar dos outros não é um gesto, mas um empenho, uma responsabilidade e envolvimento afetivo. É, como afirmou Leonardo Boff, um modo de ser essencial, constitutivo da pessoa humana, que se realiza na alteridade.

Papa Francisco não esquece na Laudato sí uma urgente espiritualidade da ecologia (nn. 202-246). Os elementos centrais de uma espiritualidade ecológica e ambientalista assentam no respeito pela criação e na sua defesa integral. Cada ser criado requer um amor doce e delicado que cuide dele, sem o arruinar, mas tornando a criação mais bela e um dom para todos. Quando nos fascina a beleza e nos encanta uma paisagem, então o ser humano é movido para um conhecimento que ultrapassa a estética e se responsabiliza na ética. A relação com a criação divina recusa visões utilitaristas e instrumentais e inspira o acolhimento do dom de Deus, conduz à gratidão e comporta responsabilidade. Ocorre aprofundar o sentido místico cósmico, não apenas como uma orientação, mas como uma fase necessária e vital da sobrevivência humana e planetária. Os desafios são enormes e requerem continuidade para conseguir mudanças e implicação de todos, aos diversos níveis: famílias, paróquias e dioceses, ordens religiosas, instituições educativas, sanitárias, movimentos, empresas, sindicatos, cooperativas. Será necessário estabelecer projetos de mudanças de comportamentos e ações de recuperação do maus-tratos cometidos.

A ecologia integral integra fenómenos e problemas ambientais (aquecimento global, poluição, esgotamento de recursos, desflorestação etc.), com questões que normalmente não se associam, como a beleza dos espaços urbanos ou a acumulação de pessoas nos transportes públicos. Serve para ler a relação com o próprio corpo ou os dinamismos sociais, porque a crise é socioambiental e se evidenciará nos próximos anos. Uma espiritualidade alimenta este percurso e estratégia, pois se cultivar um olhar contemplativo e o sentimento de união a tudo o que existe, brotarão a sobriedade e o cuidado. O valor da sobriedade feliz sabe distinguir entre necessidades reais e impostas e redescobre a essencialidade, separando-se do supérfluo, criado pela pressão do ambiente. O consumismo e a publicidade induzem à aquisição de tanta coisa que cria obstáculos, em vez de abrir possibilidades de vida serena e da justa medida, da moderação. Entender assim a sobriedade não a vê como privação, mas libertação do inútil, qual fator de uma vida pesada. Esta sobriedade tem a vantagem de permitir a solidariedade real e a partilha verdadeira.

Revalorizar o cosmo como espaço onde Deus está presente em todo os recantos da realidade vai constituir uma atitude de notáveis consequências. Uma mística da natureza é possível: assume o empenho ecológico como ascese, os prejuízos ao ambiente como pecado, renuncia ao domínio totalizante da técnica, vive em contacto com a natureza, como espaço de contemplação. Adivinha-se um misticismo cósmico que convida a uma relacionalidade transpessoal, no universo que tende sempre à possibilidade da transformação.

Hoje a mundialização encontra-se na rua, pois a terra, como muitos previam, passou a aldeia global. As comunidades de emigrados dos vários continentes, com variadas culturas, línguas, confissões e religiões estão próximas. Pode vigorar uma atitude de medo, alimentado por episódios isolados, mas engrandecidos pelos meios de comunicação e por políticos populistas. Reconhecer a beleza do convívio de diferentes estilos de vida e aprender dos estrangeiros constitui um desafio espiritual. Se repararmos bem, o diverso encontra-se em todos os níveis. Bastaria pensar nas culturas juvenis, tão distantes das gerações passadas. Estas situações põem à prova uma espiritualidade, se não for capaz de atender, acolher e amar os emigrados e estrangeiros.

Tentei pontualizar as transformações espirituais em curso, salientar elementos que caracterizam a atual procura de espiritualidade e registar como pode esta ser correspondida. Assiste-se a uma procura fecunda e inédita que provoca as religiões tradicionais a servir, em conversão pastoral, o ser humano contemporâneo, com lucidez e coragem. Oferecer propostas que sejam compreensíveis para as aspirações espirituais presentes na secularidade constitui a esperança de um futuro fraterno.

 

Bibliografia

GAMARRA, Saturnino, Teología espiritual, Madrid, BAC, 1994; Spiritualité contemporaine; défis culturels et théologiques; actes di congrès 1995 de la Societé canadienne de théologie, Les Editions Fides, 1996; JOHNSTON, W., Teologia mistica: la scienza dell’amore, Roma, ed. Appunti di Viaggio, 2001; TACEY, David, The Spirituality Revolution: The Emergence of Contemporary Spirituality. Melbourne and Sydney, HarperCollins, 2003; FUEYO SUÁREZ, Bernardo, «Espiritualidad frente a religión; un capitolo de la deriva religiosa actual», Ciencia tomista, 131, 2004, pp. 585-618 ; LENOIR, Frédéric, Les Métamorphoses de Dieu: des intégrismes aux nouvelles spiritualités, Paris, Hachette, 2005; COMO, Giuseppe , “Spiritualità per il nuovo millenio». Scuola cattolica 135, 2007, pp. 59-114; BOFF, L., Ecologia, mundialização, espiritualidade, Rio de Janeiro, Ed. Record, 2008; CASTEGNARO, A., “C’è campo?”: giovani, spiritualità, religione, Venezia., Marciana, 2010; VERSTEEG, Peter G.A.: ROELAND, Johan, « Contemporary Spirituality and the Making of Religions Experience Stredying on social in an Individualized Religiosity ». Fieldwork in Religion 6 (2), 2011, pp. 120-146 ; MENDONÇA, J. Tolentino, A mística do instante: o tempo e a promessa, Prior Velho: Paulinas, 2014; LAVAUD, Laurent, Mystique et monde, Paris, Cerf, 2015; FERRETI, G., Spiritualità cristiana nel mondo moderno: per un superamento della mentalitá sacrificale, Assisi, Cittadella Editrice, 2016; LIZ, Carlos, «Panorama da espiritualidade do nosso tempo», Revista de espiritualidade 27, 2019, pp. 245-268; TRIANI, Paolo, Teologia spirituale, Bologna, EDB, 2019; BERZANO, Luigi, «Le spiritualitá “non religiose”». Credere oggi 40, 2020, pp. 89-103; GRECO, Paolo, “La spiritualità secolare nella post-modernità”, in Esserci come oasi nel deserto della città. Per una rinascita della spiritualità secolare, a cura de Roberto Romio, Torino, Elledici, 2020, pp. 80-112; DE SOUZA, M., “Contemporary Spirituality: An Introduction to Understandings in Research and Practice”, in DE SOUZA, M., BONE, J., WATSON, J., eds, Spirituality across Disciplines: Research and Practice. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-319-31380-1_1.

Carlos A. Moreira Azevedo

Autor

Scroll to Top