A B C D E F G H I J K L M N O P Q R S T U V W X Y Z

Tribunal da Legacia

Na senda de uma conceção política verdadeiramente regalista, D. João III, por intermédio do Papa Júlio III (breve Romanum decet pontificem, de 21 de julho de 1554), conseguiu que as causas eclesiásticas nacionais não tivessem de sair do reino para serem conhecidas em última instância. A nota justificativa era simples: o conhecimento de causas judiciais por estrangeiros, desde o reinado de D. Manuel I, estava vedado por lei (Extravagantes de Duarte Nunes de Lião, liv. 4, título XII, § 1 e Ordenações Filipinas, liv. II, § 13). Por ser assim, tornava-se imperiosa a nomeação de magistrados apostólicos para decidirem, dentro do reino, os processos eclesiásticos, segundo o estilo nacional, sem morosidade na sua resolução, despesismo do erário régio e insegurança na prolação da sentença – esta, devida a eventuais desconhecimentos do mérito da causa. Com a finalidade de responder a estes anseios, instalou-se no reino lusitano um novo órgão judicial, de características suis generis, designado de Tribunal da Legacia ou da Nunciatura.

No que respeita à sua constituição, sabe-se que era presidido por um auditor estrangeiro – núncio apostólico (eclesiástico com poderes de representação outorgados pela Santa Sé) – e que integrava demais clérigos regulares e civis – promotor e juízes –, nomeados por aquele, sem qualquer aprovação régia. Inicialmente, os desembargadores da Casa da Suplicação também começaram por servir o tribunal como assessores e adjuntos, mas, em virtude dos decretos de 24 de outubro de 1663 e de 21 de outubro de 1673, foi-lhes vedada a prossecução de tal atividade. Ainda neste âmbito, à luz da carta régia de 15 de março de 1619 e do aviso de 14 de junho de 1744, apenas o promotor teria de ser natural do reino.

Uma vez constituído, o tribunal a quo não apenas se configurava como órgão judicial de segunda instância – para conhecer das causas das metrópoles de Lisboa, Braga, Évora e dos isentos –, como assumia funções de terceira e última instância para as causas das outras dioceses, após passarem, em segunda instância, pelas mencionadas justiças dos arcebispados. Em caso algum poderia a sua jurisdição prejudicar a dos bispos, inverter leis ou costumes portugueses, ou intervir em primeira instância, fosse ela ordinária ou sumária.

Se assim se houvera prescrito, na praxis, o Tribunal da Legacia parece também ter julgado, em primeira instância, causas de agentes da nunciatura e alguns incidentes de heresia. Servirá o caso do padre Manuel Morais para ilustrar tal situação. No ano de 1639, junto à Sé de Lisboa e diante de testemunhas, o mencionado clérigo, ao pronunciar palavras indecorosas para com o Sumo Pontífice, foi de imediato preso e julgado num processo desencadeado e sentenciado pelo promotor e pelo auditor da Legacia.

Estando o núncio apostólico habilitado para somente exercer a jurisdição permitida por carta régia – sendo esta jurisdição reconhecida pelo monarca, depois de lhe serem apresentadas as letras do Sumo Pontífice –, caso a excedesse, haveria possibilidade de o agravado interpor recurso extraordinário para o príncipe e recurso ordinário para o Auditório da Coroa Real (vulgo, Casa da Suplicação). Tal faculdade, desde logo prevista pelo aviso de 3 de julho de 1672, não era mais do que uma demonstração de que, dentro do reino, independentemente da matéria, a última palavra caberia sempre ao princeps. Caso as suas decisões não fossem acatadas, o Desembargo do Paço tinha poderes para desnaturalizar e expulsar do reino o magistrado eclesiástico inadimplente, se este fosse coletor ou prelado (cartas régias de 4 de maio de 1611 e de 21 de junho de 1617).

De igual forma aos demais tribunais eclesiásticos, o Tribunal da Legacia necessitava de recorrer ao braço secular, para concretizar as suas sentenças que não culminassem com penas meramente espirituais (Ordenações Filipinas, liv. II, § 8).

Por fim, laborando ao longo de três séculos, em paralelo com outros tribunais superiores herdados do Ancien Régime (e.g. Mesa da Consciência e Ordens), foi extinto pelo decreto de 23 de agosto de 1833, por não ser compatível com os princípios da Carta Constitucional e, consequentemente, com a novel organização judiciária. Não obstante, a necessidade de se possuir um tribunal com as mesmas características implicou, por via da Concordata de 21 de outubro de 1848, a atribuição das extintas competências a uma secção das câmaras eclesiásticas, entretanto constituídas nas metrópoles de Lisboa, Braga e Évora.

 

Bibliog.: ALMEIDA, Fortunato, História da Igreja em Portugal, vols. ii-iii, nova ed. preparada e dirigida por Damião Peres, Porto/Lisboa, Portucalense Editora, 1967-1971; CABRAL, António Vanguerve, Pratica Judicial, Muyto Util, e Necessaria para os que Principião os Officios de Julgar, e Advogar e para Todos os que Solicitão Causas nos Auditorios de hum, e outro Foro, Coimbra, Officina de Antonio Simoens Ferreira, 1730; CAMINHA, G. M., Tratado da Forma dos Libellos, Coimbra, Oficina dos Irmãos e Sobrinho Ginioux, 1764; CARNEIRO, Bernardino Joaquim da Silva, Elementos de Direito Ecclesiastico Portuguez, 5.ª ed., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1896; GRAES, Isabel, “O recurso à coroa”, Revista do THD, Centro de Investigação da Universidade de Lisboa, n.º 1, 2016, pp. 8-26; PAIVA, José Pedro, Baluartes da Fé e da Disciplina. O Enlace entre a Inquisição e os Bispos em Portugal (1536-1750), Coimbra, Imprensa da Universidade, 2011; SAMPAIO, Francisco Coelho de Souza, Prelecções de Direito Pátrio Publico Particular, parte iii, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1794.

 

João Andrade Nunes

Autor

Scroll to Top