Tido pelo magistério latino, católico romano, como um dos primeiros quatro Doutores da Igreja, juntamente com S. Gregório Magno (c. 540-604), S.to Ambrósio (c. 340-397) e S.to Agostinho (354-430) – todos eles promovidos a esta dignidade pelo Papa Bonifácio VIII em 1298 –, S. Jerónimo, conhecido como Eusebius Hieronymus ou Eusebius Sophronius Hieronymus, foi um homem de múltiplos saberes, adquiridos em múltiplas geografias e ambiências, quer físicas, quer espirituais e culturais.
Considerado o “pai da Bíblia latina”, a Vulgata, pode ainda ser notado pelo seu exímio labor em colocar a tradição da retórica clássica mais perto do que nunca da exegese bíblica. Foi ainda um homem de pontes entre o Ocidente e o Oriente cristãos, mas também entre esses cristianismos, já então tão plurais, e a tradição judaica, numa época em que abundavam controvérsias teológicas, às quais o próprio S. Jerónimo não ficou imune. Foi ainda um prolífico e insigne novelista, cultivando o estilo hagiográfico numa prosa que obedeceu aos mais apurados critérios literários, um cronista, um epistológrafo, um satirista, um biógrafo, um poeta. Defensor acérrimo das virtudes do ascetismo e da vivência monástica, S. Jerónimo não deixou de ser um intelectual interventivo e perfeitamente lúcido em relação aos mais acesos debates da sua época.
Nasceu por volta de 347 em Stridon, ou Estridão, perto de Aquileia, na fronteira terrestre oriental a norte da península itálica, confinada com as províncias romanas da Dalmácia e da Panónia, em local talvez próximo de onde atualmente se situa a cidade de Liubliana, capital da Eslovénia. Pouco se sabe da sua origem familiar, embora se assuma que pertencesse a um agregado relativamente abastado para a época, já de tradição cristã. Com cerca de 12 anos, deslocou-se para Roma, onde cursou Gramática e Retórica, sob direção do famoso erudito Élio Donato (320-380). Findos os estudos, S. Jerónimo recebeu o batismo cristão, em 366, talvez ministrado pelo próprio Papa Libério (310-366). O batismo do jovem catecúmeno não só lhe aumentou o empenho na defesa da fé cristã, como também o despertou para outras vivências que o iriam acompanhar ao longo da sua vida.
Tendo viajado pela Gália, por volta de 369, sentiu-se desde então atraído pelo monasticismo. Finda esta época de viagem, fisicamente falando, mas também de viagem interior em procura da sua identidade, S. Jerónimo permaneceu algum tempo em Aquileia, perto da sua cidade natal, onde veio a ter a sua primeira experiência de vida comunitária, juntando-se a vários companheiros, entre os quais Tirânio Rufino, ou Rufino de Aquileia (340/345?-410), com quem se viria novamente a relacionar na Palestina. Rufino ter-se-á ausentado, dirigindo-se para oriente, em 372, mas Jerónimo de Estridão ficou em Aquileia até ao ano seguinte, tendo então também rumado a oriente, viajando pela Trácia e pela Ásia Menor.
Terminado o primeiro período de vida em que se consolidou a sua vocação, a primeira chegada a terras bíblicas terá ocorrido em 374, ficando S. Jerónimo em Antioquia, Síria, durante cerca de um ano. É aqui que o pensador cristão relata ter tido um sonho, o qual iria transtornar por completo a sua vida e existência. Arrebatado em êxtase, viu-se ser transportado ao tribunal do Supremo Juiz, que o acusou de ser mais ciceroniano do que cristão, ou seja, mais um cultor da eloquência do que um praticante da modesta vida evangélica. A partir desta dramática experiência, S. Jerónimo decidiu dedicar-se ao estudo dos Livros Sagrados, retirando-se para o deserto de Cálcis, ainda na Síria, em cumprimento do voto de vida asceta. Embora este seja um período curto da sua vida, é ao mesmo tempo um dos mais profícuos, em termos do seu labor cultural: em dois anos, transcreveu diversos manuscritos bíblicos e, porque até então praticamente só conhecia latim, aperfeiçoou-se na língua grega e aprendeu a língua hebraica, através de um judeu; manteve igualmente um significativo volume de correspondência com diversos interlocutores.
Devido às controvérsias da época em torno das questões da Trindade e da divindade de Cristo, as quais atormentavam os monges do deserto, acabou por regressar a Antioquia. Só neste contexto, já em 378, mais de uma década após o seu batismo, é que S. Jerónimo foi ordenado presbítero, pelas mãos do bispo Paulino (bispo de 362 a 388), conhecido por diversas rivalidades e pela sua oposição aos arianos, mas que também contendeu com Basílio de Cesareia (329?-379), um dos três mais influentes Pais de Capadócia, juntamente com Gregório de Nazianzo (329-389) e Gregório de Nissa (335-394?). Ainda assim, S. Jerónimo impôs duas condições à sua ordenação presbiteral: manter intacta a sua vocação monástica e não lhe serem atribuídas quaisquer funções sacerdotais.
Apenas um ano depois da ordenação, o presbítero partiu em direção a Constantinopla, onde completou estudos exegéticos com Gregório de Nazianzo, conhecendo ainda pessoalmente Gregório de Nissa e Anfilóquio de Icónio (339?-394?). É durante a permanência de S. Jerónimo na capital do império que se realiza o Concílio de Constantinopla, em 381, convocado pelo Imperador Teodósio, durante o qual importantes decisões são tomadas, tais como o reforço da condenação do arianismo, mas também a natureza divina do Espírito Santo, patente no que ficou conhecido como o Credo Niceno-Constantinopolitano, ainda hoje diariamente recitado em parte significativa da cristandade. Igualmente neste período de residência em Constantinopla, S. Jerónimo aproxima-se da exegese de Orígenes (c. 185-253), traduzindo para latim 14 das suas homílias no Antigo Testamento, bem como as Chronicon de Eusébio (c. 265-339).
Em 382, o viajado presbítero latino encontra-se de regresso a Roma, tornando-se um assistente muito próximo do Papa Dâmaso (305-384), o que lhe permitiu dedicar-se novamente aos estudos da Sagrada Escritura, completando diversas tarefas: a revisão do texto dos evangelhos (384), a compulsão da versão grega com o texto hebraico, a correção do saltério latino – que passou a ser conhecido como Saltério Romano –, com base nos textos da versão grega dos Setenta, entre outras. Desenvolveu ainda amizade com damas nobres, entre as quais se contavam a viúva Marcela e sua mãe Albina, e Paula, com suas filhas Eustóquio e Blesila, a quem S. Jerónimo passou a ensinar os Salmos, tornando-se o guia espiritual desta escol. Tornou-se também pública a sua defesa do ascetismo e da vida monástica, cujo discurso enfático lhe viria a atrair alguns ódios.
A morte do papa deixou-o um tanto desprotegido na sociedade e mesmo na diocese romana, pelo que decidiu rumar novamente a oriente, embarcando em Óstia em 385. Com as suas protegidas Paula e a filha Eustóquio, juntamente com outras senhoras, partiram de Antioquia para Jerusalém. Durante alguns meses visitaram vários locais da Palestina, foram até ao Egito, ouvindo em Alexandria as lições de Dídimo (c. 313-c. 398), o grande teólogo copta. Fixando-se em Belém em 386, daí não mais sairia até à sua morte, em 420, lembrada a 30 de setembro. Em instalações monásticas construídas para homens, mulheres e visitantes, S. Jerónimo dedicar-se-ia à oração, mas também à produção literária, correspondendo este período ao da formação de um dos maiores eruditos bíblicos que a cristandade originou. Apesar do isolamento, não deixou de discutir os temas da atualidade teológica da época com Rufino e Agostinho, sempre mantendo bastante cordialidade com este último, mas também renegando ao pensamento de Orígenes que anteriormente o atraíra.
Pela sua presença quase totalizante ao longo de cerca de milénio e meio na liturgia latina, posição reforçada pelos cânones do Concílio de Trento no séc. xvi, poder-se-á afirmar que a obra maior de S. Jerónimo foi a Vulgata, a tradução latina da Sagrada Escritura que substituiu a Itala ou Vetus Latina, usada desde meados do séc. ii. O seu apego ao texto hebraico fez com que não se preocupasse tanto com os textos suplementares que surgem no cânone longo da versão grega dos Setenta, tendo, para além do mais, produzido a primeira tradução para latim a partir da língua hebraica, entre 391 e 406. O seu rigor científico levou-o a trabalhar afincadamente com base na Hexapla, uma notável compilação de Orígenes que em seis colunas paralelas apresentava uma edição do texto hebraico em caracteres hebraicos e outra em caracteres gregos, a que se juntavam quatro versões do texto grego.
Refira-se ainda que S. Jerónimo produziu duas traduções diferentes do Saltério, uma a partir do texto hebraico e outra a partir do texto grego da Septuaginta. Da mesma forma, excedeu em muito os critérios exigidos para a sua época, ao apurar quais os mais antigos manuscritos gregos para a partir daí realizar a sua tradução dos evangelhos. Na sua atividade como exegeta e comentador bíblico, superou em muito os trabalhos de Orígenes e de outros do seu calibre, tanto de expressão grega como latina, expondo S. Jerónimo os seus vastos conhecimentos de arqueologia bíblica e das línguas grega, hebraica e caldaica, o que fica sobremaneira evidente na sua obra Liber Hebraicorum Quaestionum in Genesim (“Livro de Questões Hebraicas em Génesis”).
Refira-se ainda os seus comentários sobre os livros bíblicos dos Salmos, Eclesiastes, Profetas maiores e menores, Mateus, Gálatas, Efésios, Tito, Filémon, Apocalipse. A sua veia cronística teve maior expressão em De Viris Illustribus (“Sobre Homens Ilustres”), escrito entre 392 e 393, que se pode considerar a primeira história da literatura cristã greco-latina, com o intuito de contrariar o orgulho pagão em relação à sua cultura. Na sua atividade como polemista, consagrou-se com os textos Adversus Jovinianum (393), contra Joviniano (340?-400?), que negava as vantagens do asceticismo, Contra Vigilantum (406), defendendo o celibato clerical e o culto dos mártires, ou ainda Dialogi contra Pelagianos (415), sobre o tão em voga pelagianismo.
A forte ênfase monástica de S. Jerónimo inspirou a criação da Ordem de São Jerónimo, ou Hieronimitas, que teve a sua eclosão por volta do séc. xiv, a qual, em bom rigor, resultou da junção de diversas comunidades monásticas já então existentes. À Península Ibérica esta obediência eremita chegou a partir do final do séc. xiv, quando alguns religiosos provenientes de Itália migraram para a região de Toledo. No seio destes religiosos, encontrava-se presente um português, Vasco Martins, o qual, abandonando Toledo, acabou por se instalar na serra de Sintra, local que se tornaria no berço simbólico desta congregação em Portugal.
Obras de S. Timóteo: Liber Hebraicorum Quaestionum in Genesim (s.d.); Vulgata Latina (sécs. iv-v); Chronicon (380); De Viris Illustribus (392-393); Adversus Jovinianum (393); Contra Vigilantum (406); Dialogi contra Pelagianos (415).
Bibliog.: Cain, Andrew e Lössl, Josef (eds.), Jerome of Stridon: His Life, Writings and Legacy, London, Routledge, 2016; Oliveira, Mário Rui F. L., “Jerónimos”, in AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.), Dicionário de História Religiosa de Portugal, vol. J-P, Lisboa, Círculo de Leitores/Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa, 2001, pp. 16-21; Rebenich, Stefan, Jerome. The Early Church Fathers, London, Routledge, 2002; ROBINSON, Douglas, “Jerome”, in Western Translation Theory: From Herodotus to Nietzsche, Manchester, St. Jerome Publishing, 1997, pp. 22-30; Weingarten, Susan, The Saint’s Saints: Hagiography and Geography in Jerome, Leiden, Brill, 2005.
Timóteo Cavaco